segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Filhos, eu sei, não voltam para casa

Fui criado na roça, minha aldeia, à luz do candeeiro e do carro de boi. Aos dez anos, meu pai, em busca de educação melhor, levou-me para Salvador. Fui morar sozinho com meu irmão e depois em pensão. Ele sempre dizia que o que precisava ser feito tinha de ser feito. Depois fui para Brasília, São Paulo e voltei para Feira. Mas não para a casa de meus pais.

Criar filhos é uma viagem ao avesso em que vemos o tempo lhe somar anos enquanto os seus se gastam. É a experiência maior da vida humana. Não são apenas as memórias e a sensação de ter se dado a eles, ao amor indecente e absoluto que eles te exigem, e retribuem, que te consagra e realiza. É a oportunidade de nos melhorarmos em outro, sem nossos erros, a barriga da preguiça e os amores incertos. A realização de lhes dar régua e compasso, limites e princípios para vencer, embora, por vezes, esqueçamos que os filhos nos decifram em silêncio e nos criam, mas à sua própria imagem e leitura.

Adivinhássemos o futuro, desfrutaríamos mais desta relação, renunciaríamos mais as exigências de fora para nos abastecermos dos seus abraços e descobertas. E, dormiríamos, nós todos, em histórias e fantasias intermináveis.

Criar os filhos, doer suas dores, viver seus temores e aprendizados, perder o sono na sua febre ou ausência, caminhar de mãos dadas numa praça ou num sonho, nos eterniza. Faremos escolhas por eles, nem sempre as melhores, muitas vezes com intenções que temos com nós mesmos, esquecendo que a vida só se faz para seu dono. Cruzaremos a longeva e barulhenta infância e adolescência -o tempo mais doce do tempo- às vezes sem perceber a progressiva e inexorável redução da dependência conosco. Acostumamos-nos com o barulho de suas múltiplas vozes, sua agenda de compromissos e, por vezes, exigências, a ocupação expansiva da casa, da cama e dos espaços de nossas vidas achando que será para sempre.

É que, embora não acreditemos e ninguém nos prove o contrário, filhos crescem. E partem. E farão de sua partida a despedida sem fim, deixando em seus quartos um troféu das competições, uma última risada, um diário esquecido, um vestido abandonado por ser infantil, um vazio que parece nunca acabar de ser olhado.

Um dia seu filho mais velho irá embora, para a faculdade, e você sentirá que sua invenção de homem tomou rumo próprio e lembrar-se-á do dia, mais cedo, que você também partiu e pensará em infinitos conselhos que acabará não dando, esquecidos no abraço. Na volta para casa, entre feliz e partido, acomodar-se-á na sua falta.

Dois anos depois sua filha irá embora e você e sua ausência será chorada às escondidas, porque apartar, disse-me meu pai, nesta quarta, ao vê-lo no cemitério, precisa ser feito. Sem o ofício do cotidiano os horários se embrulharão, a casa silenciosa se ressentirá do revés, como uma árvore sem vento, sem folhas, sem deveres. Que não abriga, nem sombreia. E, nesta reinvenção de si, de seu lar, ecoarão apenas seus próprios alaridos, sem bênçãos ao dormir. E os medos serão só seus, sem a redenção matinal de suas crias.

Encontraremo-nos nas férias, viajaremos, faremos muitas refeições juntos, e, um dia, os netos atiçarão a árvore, mas eu sei, eu também não vim, que filhos não voltam para casa.





segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Diário de Espanha e Guernica


Primeira vez que fui a Madrid o Museu Rainha Sophia estava fechado. Vi as As Meninas de Velásquez e o Jardim das Delícias de H Bosch, no Prado, mas, na lista do que me prometi fazer desde que deixei o carro de boi e a luz do candeeiro, lá na roça, faltou Guernica. Voltei à Espanha quinze anos depois.

Domingo fui ver Guernica, de Picasso, inspirado na destruição da cidade basca pelos alemães, a pedido de Franco. O mural, cubista, em cinza, preto e branco, feito para uma Exposição, em Paris, tem segurança permanente. A sequencia de sua criação, fotografada por Dora Maar, a quarta das suas sete esposas, está exposta em frente. Picasso dizia:” No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo. ("Não, a pintura não está feita para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo."). Guernica foi escolhida por ser desprotegida e dizem que, além disso, “abrigava um velho carvalho embaixo do qual os monarcas espanhóis ou seus legados, desde os tempos medievais, juravam respeitar as leis e costumes dos bascos, bem como as decisões da batzarraks (o conselho basco)”. Era o que Franco precisava para uma lição na autonomia regional.

Era 26 de Abril de 1937, uma segunda feira de feira livre, fim de tarde, quando os sinos anunciaram o ataque dos aviões Heinkels-11 da Legião Condor, da Luftwaffe. O primeiro ataque aéreo da história contra alvo civil durou 2.45 h, com bombas, inclusive incendiárias. Quase 40% dos 7 mil habitantes foram atingidos. Os que fugiam eram caçados com metralhadoras. No diário de guerra anotou-se: "O tipo de construção das casas fez com que a destruição fosse total. Ainda se veem os buracos das bombas na rua. Simplesmente fantástico."

Em Maio a Prefeitura de Guernica emitiu uma nota: “Guernica foi ferida, mas não morrerá. Da árvore brotarão novas folhas verdes em toda primavera; seus filhos a ela retornarão; suas casas serão reconstruídas, suas igrejas escutarão novamente seus hinos e preces...

Guernica, o símbolo de nossas liberdades nacionais, e o símbolo da ferocidade do fascismo internacional, não pode morrer."

Em Junho de 1937 Picasso expõe a obra. Alguns dizem que ela começou como um quadro de um toureiro morto e foi concluído como Guernica. Como lenda dizem que, em 1940, um oficial alemão, diante de uma foto do painel, perguntou a Picasso se ele tinha feito aquilo. O pintor teria respondido: "Não, foram vocês”. O que importa é que ao fim Guernica era Guernica.

Picasso especificou que o quadro só deveria voltar a Espanha quando ela fosse uma democracia. Só em 1981, após a morte de Franco em 1975, os espanhóis receberam Guernica, “el último exiliado”.

O painel expressa a agonia da guerra, a inata brutalidade. É possível ler sobre os aspectos técnicos, mas longe de mim discutir arte. O que me fez contemplar longamente a pintura é esta tentativa nunca satisfeita, concluída, nunca saciada, de entender os limites da ação do homem contra o homem. A libertação da fúria, o horror, o caos, o anúncio que se fazia ao século de um novo poder mortal. A dor que emana das figuras, a mulher na escuridão, o homem de braços levantados, o cavalo em agonia, a mãe com o filho morto, a figura mutilada, me angustiam, e me deixam perplexo, embora saiba que nada do que é do homem nos é estranho.

Chovia fino, talvez proposital, quando saí do Museu e, não sei se mais humano, ou menos, fui caminhar pelas ruas da inocente Madrid. Dia seguinte iria para Salamanca, Patrimônio da Humanidade, conhecer sua Universidade. Guernica, o manifesto estético de Picasso, agora, viaja a vida comigo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

As coisas de Luísa

Minha filha tem idade incerta. É algo entre as fantasias da infância e a realidade de adulta. Meio distância –pois exige ser grande-, meio proximidade -pois não abre mão do afeto protetor. Tem dias que discute comigo, acaloradamente, seus textos filosóficos e sociais da escola e outros que me busca desesperadamente para não atrasar na ida ao salão, nesta difícil arte de equilíbrio entre o útil e o belo que as mulheres encarnam.

Às vezes ela me conta que economizou um torpedo de celular, noutras ataca meu cartão com a voracidade dos cupins porque precisa de uma roupa única para determinada festa. Que nem sempre vai. Já pedi que ela poupe no cartão e abuse no torpedo, mas ainda não a convenci. Pelo menos da parte do cartão.

Ela é alguma coisa de guerra e paz. Capaz de indignações beligerantes e homéricas contra uma injustiça e reparações urgentes, como um dia que ligou pedindo que alguém fosse levar uma torta em minutos, ao colégio, para comemorar o aniversário de uma colega que estava sozinha por dificuldades familiares.

Ela me lê no jornal, opina, e me acha mais do que sou, esta recompensa e benesse que a inocência da admiração lega a alma dos pais. Ela chora nos filmes e me telefona desesperada para ir logo para casa porque está vendo uma série de TV que dá medo e ela torce pro galã, ah mulheres!, e não quer ficar só. Ela promete que vai acordar um domingo bem cedo e vai pra roça comigo montar a cavalo e saber tudo do cheiro do rio e que nunca vai deixar de cuidar das árvores e do capim quando eu não passar mais de memória. Ainda não conseguimos chegar neste dia e fico tentado, seriamente, em plantar bambu.

Toda semana, quando faço feira, ele me manda uma lista de comidas condenáveis sob todos os aspectos abdominais e de saúde e ameaças terríveis se não comprar. Mas ela estuda sem ser obrigada e deixa de ir à festa porque precisa estudar e eu não tenho como negar.

Claro, ela tem vocação fotográfica, centenas de foto na net e de amigos nas redes sociais. E é multifuncional. Escreve no computador, fala no telefone, conversa via net, com a mesma pessoa. Ao mesmo tempo.

Ela me faz rir com os micos da espontaneidade e já me disse umas quinze mil coisas que são um dos seus sonhos. E me diz que precisa ir estudar em Salvador, ano que vem, porque senão será como se não tivesse crescido. E cada dia, deste ano, se faz uma longa e doída despedida, que o mundo é menos mundo sem ela no cotidiano. Mas lembrarei que fomos juntos a todas as Micaretas, inventamos lendas, que vi vários shows de sertanejo por ela e que a ensinei a andar numa bicicleta alugada, numa ruazinha a meia-noite, na levemente fria Paris.

Às vezes, grande, diz que vai pra balada, mas, às vezes, pequena, como esta semana, vem dormir em minha cama. Com seu jeito expansivo botou a perna por cima e me deu a mão, por vontade, ou acaso, não sei, na madrugada. Acordado, fiquei imóvel para que a forma não se desfizesse e o encanto durasse. Deus, por motivo absolutamente inexplicado, manteve-me respirando depois disso.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

INDIGNAÇÂO - Reage Cidadão

Campanha do Jornal Tribuna Feirense. Texto nosso e produção do anúncio de Xiko Melo da Mercado


O brasileiro precisa indignar-se se não quiser que o futuro chegue tarde demais. É histórico que avanços e retrocessos, em todos os campos, são cíclicos. O avanço da economia, associado aos péssimos, ainda, índices de educação e informação que afeta a maioria - uma contradição em si, diante da expansão da comunicação - estão se tornando um salvo-conduto para um dos mais graves momentos de degradação da prática política, administrativa e institucional do país. Seja no âmbito municipal, estadual ou federal.

A ascensão de um governo que representava a esquerda - ou uma esperança de esquerda - aos vícios mais torpes do poder contribuiu de forma relevante para agravar a deterioração da práxis política. A defesa intransigente e simbólica que seu líder maior - o ex-presidente Lula - faz dos que cometeram erros morais, o constante incentivo do desrespeito à lei e à Constituição, à história, além da leniência e compactuação com as mais atrasadas lideranças - cumplicidade que não pode ser justificada pela governabilidade de um Presidente que detinha recordes de aceitação popular-, envenenam a Sociedade.

A sensação de que os Códigos de Leis são incapazes de produzir punição real e recuperar recursos roubados aos borbotões funciona como alento ao que usurpam o poder em benefício próprio. Além disso, a compra dos movimentos sociais com generosas verbas - da UNE ao MST e Centrais Sindicais- eliminou forças que sempre estiveram na linha de frente das cobranças e eram mobilizadoras da indignação popular.

A opção pela alegria, seja como for, e não pelo enfrentamento, tão típico da alma do brasileiro, a sensação que o resgate social promovido pelas migalhas dos planos assistenciais representa grande avanço e o destaque do Brasil no cenário mundial, vendido como um espetáculo do crescimento, não podem mascarar o descontrole do Estado e a quase completa destruição do papel do Senado e da Câmara como espaço perene de ação política.

O brasileiro precisa compreender que a política, como ciência, como caminho para construção da nação, é sua responsabilidade. Não podemos compactuar com governos corruptos, incapazes administrativamente, que estupram sigilos, saqueiam o futuro de nossas famílias, e o presente de nossas vidas. Precisamos reagir, expulsar, das Câmaras, das Prefeituras, das Assembleias, dos Governos, do Poder Central, políticos que ficariam melhores no cárcere que exercendo mandatos. Para isso, necessitamos de Polícia sem manipulação, leis mais ágeis e exigir resolutividade do Judiciário.

Não podemos aceitar o aparelhamento improdutivo da máquina pública, nem as sofisticadas quadrilhas, de qualquer matiz, que roubam nossos impostos e serviços, e nos espoliam sempre mais, insaciáveis. Temos de acusar e apontar nas ruas aqueles mercadores que fazem da política, barganha, trapaceiros que curvam a coluna ao dinheiro e às ambições.

Devemos repudiar partidos que se estruturam como lojas de vender convicções e buscar identidade ideológica, mínima ao menos, pois sua falta tem produzido apenas servilismo e adesismo oportunista. Precisamos enfrentar o autoritarismo que tenta amedrontar e punir a falta de coerência com a recusa ao voto.

Não podemos nos acomodar ao desalento da falta de opções. Lembrem-se, brasileiros, que somos responsáveis pelo país, cidade, qualidade de vida que vamos legar aos filhos, e pelas facilidades e custos que eles encontrarão. E a vida os punirá se formos omissos agora.

Jovens, precisamos de homens. Estejam à altura para escolherem o país que querem ter. Pais, sejam exemplos. Não podemos ceder, nem ficar indiferentes. Vamos nos indignar e mostrar que ética, caráter, honra e honestidade ainda são motivo de orgulho. Por minha aldeia melhor, por um Estado eficaz, por um Brasil maior.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Querido Diário - Chico Buarque

Hoje topei com alguns


conhecidos meus

Me dão bom-dia [bom-dia], cheios de carinho;

dizem para eu ter muita luz

e ficar com Deus

Eles têm pena de eu viver sozinho

Hoje a cidade acordou

toda em contramão

Homens com raiva,

buzinas, sirenes, estardalhaço

De volta à casa, na rua

recolhi um cão

que, de hora em hora, me arranca um pedaço

Hoje pensei em ter religião

De alguma ovelha, talvez,

fazer sacrifício

Por uma estátua ter adoração

Amar uma mulher sem orifício

Hoje, afinal, conheci o amor

E era o amor, uma obscura trama

não bato nela, não bato

nem com uma flor

mas se ela chora, desejo-me em flama

“Querido diário”

Hoje o inimigo veio,

veio me espreitar

Armou tocaia lá

na curva do rio

Trouxe um porrete, um porrete a “mode” me quebrar

mas eu não quebro não, porque sou macio.


Ouvir aqui:
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/1911622

sábado, 25 de junho de 2011

Declaração

Rene Magrite


Darei amor verdadeiro as prostitutas que cobram por sua hora de mentiras,

amarei imortalmente as interesseiras e as que mentem da forma mais sincera,

me abandonarei nos braços das mulheres fáceis e daquelas sem memória no dia seguinte

e permitirei que minha alma seja irremediavelmente tomada por aquelas a quem desprezo,

escreverei versos de paixão às que fizerem do meu sexo, a sua repulsa,

guardarei entre os guardados de uma vida toda a infame que me roubar a fé definitivamente e o linho de

meu coração, para que, assim, me impeçam de continuar a ser teu ...

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Desarmamento Vaginal

A vantagem do Brasil é que os políticos são previsíveis e, entre o superficial e o profundo, sempre irão preferir o cosméstico, que não mude nada. Ou que finja mudar, enquanto tudo permanece como está, pois o brasileiro odeia enfrentamentos. A nova Campanha do Desarmamento é prova disto. Não que não seja meritória como educação, conscientização e mais um cabedal de boas intenções das quais o inferno está abarrotado. O cinismo é ela estar sendo usada como uma resposta à tragédia de Realengo, no Rio. Com a sensação de culpados, mas incapazes de lidarmos com as reais causas da violência, optamos por uma medida que dá a impressão de estamos agindo, liderada pelo boquirroto Senado Federal. Além disso, ela faz com que o governo repasse ao cidadão uma responsabilidade que é sua. A Campanha não fará recuar em um dígito sequer a violência, e tragédias como aquela, individuais, não se resolvem com vaselina e propaganda.

Embora seja incrível que pessoas sem experiência em luta e que se dizem incapazes de matar uma mosca - as moscas duvidam - queiram ter uma arma, não é a existência delas que faz as mortes, excetos as acidentais, como mostra o mundo inteiro. O que tece as mortes é a desvalorização do humano, a desimportância progressiva da vida – que só se resolve com educação - e a impunidade. É a lei sinuosa, flexível. A proibição não impedirá a quem quer ter uma arma de tê-la, exatamente porque o governo, omisso, cúmplice, não combate a entrada e a circulação de armamentos no país. Dados do Rio mostram que 60% das armas no Morro do Alemão são de uso restrito da Polícia e Militares e 77% delas são estrangeiras. Nossa fronteira é monitorizada por boato enquanto o delivery-arma faz sua entrega com motoboy, de países vizinhos. Enquanto isto a Polícia Federal tem seus recursos cortados, o VANT (Veículo Aéreo Não Tripulado) não decola por falta de gasolina e o governo mostra-se incapaz de exigir e criar uma política de ação regional com as nações contíguas e fornecedoras.

O Desarmamento trará outros problemas ao governo. Guarda-chuvas, foices, canetas, facas, automóveis, chumbinho, cartão de crédito, granadas, porretes, incêndios, entre outros, têm sido usado como armamentos, o que nos obrigaria a proibir de isqueiros a espetinhos de churrasco. Sem contar que, por estes dias, uma mulher lubrificou a vagina com veneno e pediu que o marido fizesse sexo oral, o que nos coloca diante de uma verdadeira emergência nacional. A partir de agora, toda mulher será considerada armada e perigosa, portadora de arma de fogo. Nos casos das brancas será pior, por terem dupla letalidade, já que além de arma de fogo serão arma branca. Não sabemos o que o Ministério da Justiça recomendará. Abstinência, roleta-íntima, ou se, ao invés de ginecologistas, as mulheres passarão a ser examinadas por especialista em armamento químico e receberão um alvará temporário, ou, ainda, se serão distribuídos kits-teste junto com a camisinha-colete para serem usados nos encontros carnais.

Nada contra a Campanha do Desarmamento, a educação continuada e os otimistas envolvidos. O que ela não pode abafar é a inércia governamental que faz do tráfico uma ação lucrativa, e da leniência das leis uma tentação ao crime. Nós precisamos é cobrar, exigir ações firmes, sólidas, profundas e não pontuais. Mais objetividade e menos discursos. Além, é claro, que o STF defina, de forma urgente, se, ao iniciarmos um combate sexual, embora rigidamente armados diante daquela atração potencialmente letal, a mulher poderá nos matar alegando legítima defesa. Afinal, nossa munição acaba enquanto a delas é inesgotável.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

O apoteótico desfile do Tracajá

Bloco que é bloco tem sede em bar e não em lojinha com ar condicionado, por isso o Tracajá, o mais alternativo dos alternativos, concentrou-se na Casa do Sertão, o restaurante e território regional, de Getúlio, de meio dia em diante. Chego por lá e percebo a inovação. Enquanto Carlinhos Brown fez o camarote andante o Tracajá fez o bloco estacionado, que tartaruga que se preza odeia movimento. A média é de um folião por músico, mas logo isto vai se invertendo. O pré-abastecimento de cerveja corre solto, para prevenir as intempéries da avenida. A TV vem filmar e Reginaldo Pereira, criador, articulador, caixa e bandeirinha, junto com Cristovam Aguiar, tentam fazer a todo custo que os foliões se levantem e juntem-se à orquestra sinfônica do Tracajá. A orquestra tem viola, violão, trompete, sax, violino, triângulo, acordeom, zabumba, percussão, tuba. A zona instrumental mais afinada de Feira. As tartarugas, ainda desconfiadas, se mexem.

Ao chegar no portão de entrada falta a lista das atrações aos fiscais da prefeitura e somos barrados. A polêmica começa. Uns dizem que devíamos subir a Getúlio Vargas, outros dizem graças a Deus que o desfile foi só 30 metros. Telefone pra cá, pra lá, o secretário Alcione Cedraz aparece e comete a loucura de nos liberar e o que é pior, desfila junto. O bloco, contra todas as probabilidades, se move. A primeira baixa foi Ildes Ferreira que desapareceu.

Curiosidade e admiração são o que desperta o lento mover-se do Tracajá. Foliões vão chegando e a banda consegue alguma ordem regida pelo maestro Asa Filho com uma batuta de alecrim. Ele promete que no próximo ano vem de fraque. Lampião vestido de lampião ao lado de um artista vestido uma fantasia de Charles Albert saem na frente do trem de apoio, que Tracajá não tem scaniazinha de apoio não, tem é trem. A imprensa e vendedores de bebida assediam o bloco. Maura Sérgia diz que ano que vem tem o TracaBar. Para quem pensa que o bloco é pouco só a Comissão de Frente, em determinado momento, tem o prefeito José Ronaldo, o ex José Raimundo, os deputados federais Fabinho e Colbert (um dos mais animados foliões), o Secretário de Comunicação, o de Cultura, o ministro cubano, um coronel do exército. Agora me digam que bloco tem esse abre-alas?

Mas o desfile não foi só alegria. Momentos difíceis aconteceram. O primeiro quando entramos no fechado corredor dos camarotes e alguém abriu uma saída de emergência. Foi um pânico pelo medo da debandada dos foliões já que Tracajá não reproduz em cativeiro, daí porque muitos não tem filhos no casamento. Edson Borges, cansado, gritava: dobra pro Zequinha, dobra pro bar do Zequinha. O segundo foi quando apareceu uma sombra fazendo o bloco bandear todo para um lado e empacar, que tartaruga, como vocês sabem, detesta sol. Com muito esforço o bloco andou. Já no fim do corredor chega o deputado Zé Neto. O terceiro momento foi quando passamos em frente aos sanitários da rodoviária e o bloco sumiu. Pensamos que tinham sido abduzidos por algum ET ou recolhidos pelo Ibama, mas foi apenas uma concentração dentro dos banheiros que tartaruga bebe muito, mas tem bexiga pequena. Um repórter me pergunta: e aí César só musica boa no Tracajá não é?

Respondo: é verdade. Aqui não tem música de boquete, chupa toda, nem agachadinho, até porque, pelo estado dos foliões, se alguém der uma agachadinha não levanta mais. Vai ser o primeiro caso de tartaruga atolada no asfalto e o cara só sai de ambulância. Cristovam Aguiar relata sua preocupação com a altura do som, especialmente o violino e o violão, temeroso de reclamação do Meio Ambiente.

Ao chegar depois da rodoviária Reginaldo Fotografia decreta o fim do desfile, por falta de combustível cifrônico para a orquestra. Argumento que povo está na Presidente Dutra e o Tracajá tem que ir onde o povo está. José Raimundo e eu discutimos com o Maestro e acerto, com dispensa de licitação, pela urgência, um aditivo maior do que o reajuste do funcionalismo federal, para seguirmos até a Casa de Saúde Santana onde metade dos foliões receberá meio-viagra e a outra uma guia de internamento. Com cento e cinqüenta boas razões o Maestro desbaratina e a orquestra puxa Bananeira Chora. José Raimundo assume o comando da linha de passistas com o talento que Deus lhe deu para a dança e o Tracajá desfila garboso pela avenida. O povo aplaude o espetáculo. Alguns recomendam internamento.

Chegando próximo a Casa de Saúde alguém grita: só a polícia pode nos deter agora. A polêmica recomeça. Metade que seguir até o Rio Jacuípe a outra quer ir fazer um São João antecipado em Serrinha. Diante do impasse o Maestro toca a saideira: o Hino a Feira. Muitos dão as mãos agradecendo a Deus pelo suor, a cerveja e nenhum ataque cardíaco. O entusiasmo e a alegria envolvem a todos. Vários choram. Alguns de emoção, outros pensando no que vão dizer quando chegarem em casa. Os sobreviventes, devido às condições gerais, embarcam no trenzinho infantil e descemos a Getúlio Vargas. No primeiro bar os remanescentes do bloco empacam e ficamos no Zequinha, com a banda, honrando o slogan: sede zero. O Brasil que bebe ajudando o Brasil que tem sede. Vou-me embora que ainda tenho que achar muita explicação. Ano que vem tem mais. O Tracajá foi uma apoteose!!

2003

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Vontades vãs

Rene Magritte

Abraço miragens. Arrodeio imaginários. Velo, devoto, as vontades vãs e caço as rotas do que te enlouqueçe. Atiço palavras ao teu ouvido como quem se lança na única tábua  de salvação. E nem sei quem tu és...

A tua pele onde minha mão adormeçerá instintos e a boca aplacará fomes ancestrais não terá aceiros nem margens, ou pudores. Não conhecerei tuas santidades, nem recatos. E, no entanto, pode ser que nem existas...

Sei dialetos. E perdições. Desconheço remissões para oferecer, mas , apesar disto, planto as flores mais vermelhas em Setembro, me lavo de orvalho do capim, conheço os bichos da roça e ando de pés descalços na terra. E, nem prevejo se não antes de tarde demais, virá...

Não te espero, nem parto contigo. Nada tomo que não seja meu na tua vinda.  Mas celebro os rituais mais sagrados e entrego as oferendas mais sinceras de mim pela tua concessão.  E nem sei se tu, nua, é real...

Te farei altar de festas pagãs e devoções de amor. Que não pede, nem exige, apenas se faz.

Te sagrarei. Para te contar  minha história do mundo.   Se soubesse teu nome e quizesses  ouvir...

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Naufrágio

Meu naufrágio é tua pele,  essa permanente rota de  desvario e perdição. E quando me delito em teu ouvido em confissões indecentes, num dialeto de entrega e invasão, quando profano tuas esperas, é porque quero me perpetuar na tua falta. E ficar tatuado nos instintos, nas reações primitivas de teu corpo  insano.  Porque quando tiver de partir, de impossibilidade de amor, ou vida, cortado o fio pelas deusas que tecem o  fio  do tempo, eu saberei que tu me plantará numa flor qualquer no canto do jardim, na frente do armário quando escolher um vestidinho que dançe ao redor ti, quando se desequilibrar na bicicleta e teus braços buscarem amparo no vazio. E tua boca, esse abismo de ausência, na distância, esse aceiro a dominar todos os incêndios, quando oferecida, é minha cobiça e destino.

Eu te nomeio e tu me reinaugura. Te imagino e tento. Se vier o mundo será só enfeite...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Convite...

Porque é tecida de flores nas manhãs de sábado e lua na alma te debulho e espero. Tu, meu altar de palavras e rendição, minha cobiça e vontade. Porque sei das vastidões que te cabem e dos percursos de mulher que te permeiam,  te sagro e chamo, te convido ao improvável. E porque sei que a mais longa das vidas pode ser vivida em um instante me curvo ao teu ouvido,  te dispo dos pudores e te semeio fêmea imaginária. Para que tua pele se contorça da falta da minha mão e suas  ambições me inscrevo em tua memória, para que saiba  que não há rota de fuga sem que te percorra a eterna pergunta do que seria este encontro. Mas, se vier,  tua palavra inaugurará países e terras únicas, como feitiço regenerador. O tempo será uma ilusão e a eternidade durará a permanência de tua boca. E tua beleza milimetrica,  o linho de teu cabelo solto  e os fios de mar selvagem e inexplorado de teus olhos, teu vestido a separar os meridianos de meu mundo, me fará inventar alfabetos, dançar na chuva, ler revista em quadrinhos, pular amarelinha, pois saberei que, sendo teu homem, tudo, até aqui,  terá feito sentido e razão.

Não importa o tempo que ficará. O que te nomeio não carece de perenidade e sim de entrega. Nos teus poros, como numa  rede de pescador, ao avesso, migro para dentro de você. Te  sagro vencedora...

Para que, vencedora, ceda...

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O Cheiro dos livros...

As páginas dos livros recendem ao teu cheiro. Abrí-las é percorrer novamente o alfabeto de teus desejos, de teu amor. Como se as palavras fossem teu manto e veste única e a leitura dos dedos sobre as páginas tocassem tua nudez. Assim, outra vez, eu sacio tuas vontades e domo teus receios, inscrevendo meus sonhos, minha história do mundo, minhas necessidades de humano na tua memória. E, então, apaziguo minhas dores de homem, na delicadeza de tua pele, na inocência e abismo de tua boca, na paz de tuas coxas de dona. Sei que minhas guerras se renderam ao teu jeito de quem fia o mundo inteiro e à tua posse, de quem se inscreve inteira, completa e irreversível, nas terras do outro. E me farto desse teu cheiro, de mulher, que não me deixa. Que poreja e alucina. Banquete e escassez. E o perfume em cada folha alardeia, através dos tempos, teu nome a todos os cantos de tua ausência...

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Palavras..

Escrevo porque as palavras, quando as sinto, tem frio. E precisam do calor dos olhos, do abrigo do papel, de proteger-se do inóspito, da rispidez com que as trato e, fora de mim, elas podem ser dóceis e acalentar-se de novos sentidos. Porque ditas, esvaem-se, exibidas, se transmutam, expressas, se recompõem. Porque do forno em que as liberto, ardem infernos, corre o Hades, há óleo fervente. Porque as firo com o martelo de Vulcano, na bigorna, dobrando-as, retorcendo-as, buscando uma obediência que elas nunca me têm. Porque as palavras, minhas, abrigam mortos, abrigam deuses e pecados, abrigam temores, risos escancarados e impróprios, sêmen a ser engolido, espesso, declaração de posse no cartório do céu da boca. Escrevo porque os desertos são vastos e lá apodreceram os inocentes, os mares são revoltos e lá todos os meus guias fizeram motins, porque os vendavais me atiçam, o desconhecido me alucina, porque as palavras copulam como devassas, messalinas, ninfomânas de sentidos, de reconhecimento, na minha alma.

Escrevo porque não sei, escrevo porque não me sei. Escrevo e nem sei se vale o escrito, porque já são outras as miseráveis que me dissecam, feito Harpias, com suas garras, a expor a carne, a anatomia das vísceras, os segredos de túmulo. Porque fiz cercas na infância, porque andei a cavalo, porque o carro de boi ainda canta o canto melancólico de suas rodas, dia e noite, porque as febres ainda não cederam, elas me dizem. Porque me ancoram, me sinalizam, me permitem manter a lucidez do outro, o que janta no horário combinado e cumprimenta os senhores e as leis. Porque não me preciso, porque me impreciso, porque ordenei massacres, porque fui aonde não deveria ter ido, pisei areias movediças, andei em labirintos e converso com fantasmas, porque tapeei Cérbero, o cão de três cabeças e beijei as bocas malditas, porque beijei as bocas, porque beijei e trago as impressões digitais queimadas nas labaredas do ventre, dado, da mulher.

Porque sofro de silêncios intermináveis, atávicos, porque conjuguei orações profanas, porque tenho distâncias impercorríveis entre o que sou e o que me faço ser, porque não me compreendo e nem me explico, eu me rendo às palavras. Porque elas são minhas rezas, meu xibiu, meu código, minha ponte levadiça, minha tábua de salvação, minha expiação, analgésico, comida, manto, tragédia e glória.

Porque assim posso dar mesmo o que não tenho, o que me é escasso, porque assim posso esperar que tu, fêmea, destino, busca, me salve da penúria...



sábado, 12 de junho de 2010

A Delícia dos Amores

Janos Makray


Pode ser que os amores de hoje pareçam menos insensatos que os de antigamente e as paixões morram mesmo a pequenas distâncias, ao contrário do que dizia Camões. Mas isso que se finda "mesmo à mudança mais ligeira", como nos lembra Shakespeare, em seu soneto cento e dezesseis, não deve ser o amor. Certo que é difícil falar de amor sem cair no lirismo fácil, nas hipérboles, nas metáforas, mas é que este é mesmo tecido de metáforas, hipérboles, de lirismo desmedido.


Clarice tem razão: há coisas indestrutíveis, incapazes de serem aniquiladas pelo tempo, que nos acompanham pelo tempo da memória. Uma delas são as amarras entre um homem e uma mulher que viveram juntos, em comunhão, certos momentos. Vínculos criados por quem viveu um encontro, uma paixão, uma possibilidade antiga, como acontece quando se realiza um desejo remoto que, de repente, se faz chance, que se inicia por uma combinação de acasos, que viola princípios e limites e permite a uma mulher êxtases desconhecidos. E não deixa escolhas. Desejo ao qual se pode renunciar, mas não se pode esquecer, que não se desfaz como tatuagem temporária. Paixão que, mesmo finda, te acompanhará como um souvenir, um hiato, um ponto luminoso, um lugar dentro de você que não poderá ser reocupado por nenhum outro homem ou mulher e que reordenará tuas forças para continuar vivendo. Será irremovível a passagem de teu homem ou de uma mulher a quem você permitiu que decifrasse todos os seus mistérios, como uma sacerdotisa, e sentenciou todas as suas confissões, todos os longos anos de espera.



Por mais que os tempos mudem e anunciem o apocalipse das relações há, ainda, parceiros que se entregarão rendidos ao ofício das palavras, que testemunharão com o movimento de seus corpos a coivara de desejos que os devora. Que irão além do indizível, pois terão tido a permissão de atravessar a cerca de espinhos da solidão alheia. É preciso, mais que nunca, apaixonar-se irremediavelmente, desfazendo as armadilhas do viver, olhando do avesso comum, deixando-se render pelo parceiro cuja alma é uma rodilha de feitiços. Por uma mulher cuja pele seja como um terreno de trigo exposto a ventos milenares que a moldaram e que tenha gosto de antigos mares extintos. Por um homem que se desfaça de todas as lições aprendidas só para lhe conceder todos os seus reinícios. Por uma mulher capaz de lhe fazer as doações mais íntimas, que lhe satisfaça, mas nunca o sacie, ou por um homem que faça com que você sequer se reconheça de tantas transformações que lhe provoca, ou das loucuras que comete. Como quem, indefeso ou indefesa, comete o pecado, apesar de conhecer as dores das condenações.



É necessário amar uma mulher que deseje a dor de sua posse, como a dor que se tem vontade que não acabe mais. Ou um homem que se faça perda irreparável a cada mínima despedida, como se, de repente, todas as suas células estivessem subitamente fazendo uma mitose simultânea. E que a fome de ambos seja como uma erosão devastadora, que desrespeita a distância, as diferenças, os impedimentos.
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Nestes dias tão dissolutos, que se busque uma mulher que ande nua sob um manto de chamas e versos, e um homem que se condene, realizado, à escravidão da mulher que ama. Aos que encontraram, que o destino lhes seja favorável e sua história reverbere aos quatro cantos do mundo. Aos que ainda procuram, apressem-se, antes que já não se possa mais contar grandes histórias de amor.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Exílio da cultura feirense


tela de Juracy Dórea


A cultura de Feira vive em permanente exílio. Na segunda cidade do estado não há projeto cultural definido, demarcação de identidade cultural ou otimização do potencial econômico, educativo e de valorização da vida que a cultura permite. Esta situação decorre, sobretudo, de não termos uma Secretaria de Cultura capaz de atuar como agente catalisadora das múltiplas manifestações culturais e unificadora dos atores do setor, exatamente por ser destinada à acomodação política o que impede sua ocupação por lideranças com domínio técnico.



Ao longo dos anos, tivemos apenas uma política de eventos dispersos e desintegrados. Com a maior parte das verbas alocadas na Micareta -festa padronizada e mercantil- e no São João -cada vez mais desfigurado pelo axé-music-, restam pouco recursos para viabilizar ações culturais.
A Fundação Egberto Costa não consegue cumprir de forma plena os objetivos de seu Estatuto, e a menina dos olhos - o Museu Parque do Saber-, apesar do eficiente diretor e de ser um bom espaço educativo e científico, não é, em essência, um instrumento cultural. A Secretaria de Cultura, esvaziada pela Fundação, dedica-se ao Esporte e Lazer. Culturalmente, tornou-se irrelevante e seus espaços de ação são limitados. Os teatros apresentam entraves funcionais, o fervente e insalubre Mercado de Arte está descaracterizado e transformado em mero espaço comercial, e o Museu de Arte Moderna, salutar criação de Juracy Dórea e José Raimundo Azevedo, está aquém do seu potencial. O Pró-Cultura é um projeto que não consegue tornar real a captação de recursos na dimensão exigida.


O patrimônio arquitetônico vai sendo impiedosamente destruído, à exceção do Casarão dos Fróes da Motta salvo pela Fundação Senhor dos Passos que, aliás, realiza ações de preservação da memória, a exemplo do excelente acervo de filmes de curta duração que resgatou. E o Casarão dos Olhos D’Àgua que foi- vá lá- restaurado.

O agente cultural mais ativo é o CUCA, da UEFS, dirigido com competência por Selma Soares, que, apesar da limitação de recursos, desenvolve ações contínuas, como o Festival de Sanfoneiros, exposições, teatro, cinema de arte, Caminhada do Folclore, e algumas inovadoras, como o resgate do Bando Anunciador, Pôr do Sol, o Aberto do Cuca, entre outras.
Apesar das inserções do CUCA, a UEFS, com sua massa cultural e pós-graduações, mantém certo isolamento, quando, por ousadia e obrigação social deveria mapear, discutir e oferecer uma proposta cultural não internamente, mas à cidade, sugerindo diretrizes aos órgãos efetores. Aliás, em recente conversa do Tribuna Cultural com artistas, sugerimos um encontro sobre cultura na UEFS que permitisse subsidiar estas diretrizes. A UEFS tem o dever e a capacidade de desenvolver projetos de pesquisa e captar recursos junto aos órgãos de fomento, direcionando-os ao estudo da cultural local e inserindo-se na comunidade de forma mais protagonista.

Quanto ao estado, seu Secretário de Cultura desconhece Feira. Suas falas por aqui se revestem de mediocridade e indiferença. O Centro de Convenções segue inconcluso, sob um festival de desculpas esfarrapadas de suas lideranças. Já o Amélio Amorim é um monumento ao descaso e um desrespeito à comunidade e memória local. O teatro e as salas do CCAM realizam algumas atividades, mas o Complexo Carro de Boi segue um processo de destruição que só merece o repúdio da sociedade feirense.

A peça Decameron fez sucesso aqui, mas é um retrato da improvisação. As cadeiras não têm numeração, a iluminação, bilheteiro, ingresso, água mineral, cadeiras, etc, são pagos pela produção. Os camarins são uma vergonha. Enfim, não temos um teatro que permita que produções mais elaboradas sejam trazidas, hoje um trabalho hercúleo de Edson Porto. A plateia de teatro, que já lota peças e shows, precisa de continuidade para que se mantenha cativa e se multiplique. É vergonhoso e absurdo não termos um teatro completo. O governo do estado poderia, ao menos, adaptar o Amélio, dando-lhe condições de funcionar como um espaço teatral de verdade.

É preciso agir. Que as Secretarias de Cultura e Educação ajam integradas, que a Fundação Egberto Costa seja pró-ativa, treine técnicos e coloque-os à disposição de quem precisa elaborar projetos para captar recursos, e fomente a participação nos editais, afinal a cidade será beneficiada. O mais importante, entretanto, é que a Secretaria de Cultura adquira porte, dimensão, estatura, para que seja capaz de colocar o estado, CUCA, UEFS, Secretaria de Educação, DIREC, CDL, Galpão de Arte, grupos populares, à mesa, e todos juntos discutam a imagem física, imaginária e identitária da cultura feirense, viabilizando um projeto integrado, único e permanente, que anistie a cultura feirense do seu degredo e permita o fim do seu exílio.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Receba a Galinha Pulando




O amor é memória. Bioquimicamente, como dizem os cientistas, ou poeticamente, como creem os românticos, a permanência enfrenta o desenlace diário, em que o cotidiano vai aluindo o enlace amoroso e aproximando os finais. Sabemos que é do deslumbramento dos momentos a dois, que se vai compondo o feitiço das lembranças, os fios invisíveis que amarram uma vida na outra para as longas travessias. E que é da capacidade de completar o imaginário do outro, de criar instantes de arrebatamento, em cenários, textos, atos, que se constrói a imensidão do amor e se prepara o altar da moradia dos casais.


É claro que, em todos, e em especial no coração das mulheres, habita de forma inata a busca desta paixão definitiva, mas sabedores das fragilidades humanas e da volatilidade dos tempos modernos nós, pais, olhamos com angústia as descobertas de nossas filhas adolescentes. Afinal, todo pai cria a filha com desvelo de artesão, polindo-a com o balé, escola, idiomas, passeios, saberes e afetos, esperando que a vida lhe seja a melhor possível.



Inicialmente, torcemos para que não abandonem as bonecas - abandonadas; torcemos para que não encurtem os vestidos – encurtados; torcemos para que não sejam olhadas – olhadas; torcemos para não saber – sabendo; fingimos não ser verdade – sendo; torcemos para não serem beijadas – sendo; torcemos para não durarem seus romances – a princípio, incluídos apenas na moderna categoria dos “ficantes”, entidade abstrata sem vínculos funcionais ou dores amorosas.
Mas é evidente que, com a cumplicidade das amigas, abandonados os primeiros temores, sinalizado aos pais que a vida tem um ciclo biológico a ser cumprido, ampliado o calendário de festas e eventos de modo geométrico e o guarda-roupa e o salto em extensões piramidais, eis que ela está pronta a ser conquistada.
A partir daí a mãe funciona como uma ONG auxiliar, e o pai, como sistema automotivo e último agente de alforria. Estão incluídos uns pequenos truques, que os pais ouvem com cara séria e a fé mais improvável do mundo, sem deixar transparecer que fato similar já tenha acontecido no universo.



Foi assim que, sábado destes, minha filha pediu-me para ir com amigas a um bar moderninho. Depois das seis horas de arrumação, e do caos no quarto, deixei-a lá com as colegas. Achei-a arrumada demais para encontro tão factual, mas a pulga atrás da orelha estava de ponto facultativo, e voltei para casa e fui tomar um vinho com amigos.
A conversa ia rolando, quando ela me telefonou:
- Pai, tu me ama?
- Filha, pode ir direto ao assunto e pedir, que o risoto tá esfriando.
-Afff! Sabe o que é, pai? É que um amigo disse que queria me levar em um show no Kabana”s. Nunca fui lá. Queria saber como é. Fique “de boa” que Amanda Almeida e Lucas Bulos (nomes fictícios) vão comigo.
A menção ao local, com muita dança, e a frágil garantia dos colegas deveria ter me alertado. Mas, todo trabalhado no vinho (conselho: se beber, não atenda a pedido de filha), concordei. Na real, percebi haver mais alguém. Mas, o amor pode surgir em qualquer lugar, e pensei que podia ser pior.
Mais tarde, com alguma expectativa - e alívio, não nego -, fui buscá-las.
- Filha, foi bom o show? Legal o cuidado desse “amigo“ teu em te levar em um espetáculo. Como era o nome da banda?
Foi aí que ela me contou, e perdi o sono. Fiquei imaginando minha neta fazendo uma redação pro colégio, ou pedindo à mãe para tocar a música do encontro dela com o pai e perguntando quem estava fazendo o show - se Sinatra, Roberto Carlos, ou, vá lá, Victor e Léo. E a mãe respondendo:
- Não, minha filha, ele me levou pra ver a banda “Receba a Galinha Pulando”.



Ainda não sei se economizo algum dinheiro para pagar o analista de minha neta, ou gasto-o comigo mesmo. Afinal, era indisfarçável seu riso de felicidade na manhã seguinte.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

As rosas proibidas



O século XX tem aí entre 1950 e 2000 o que considero os melhores cem anos da Modernidade. As grandes transformações comportamentais, da pílula à mini-saia, da variedade sexual à emancipação feminina, da revolução musical ao pouso na lua. Das descobertas e ações impactantes na saúde à avalanche de mudanças causadas pelos avanços da comunicação, do computador ao Iphone, da afirmação dos direitos individuais à globalização e falência dos modelos políticos, este século de cinqüenta anos não deixou pedra sobre pedra.


Evidente que a tecnologia assume a dianteira do progresso indo da nanotecnologia ao desnudamento do Genoma e a brincadeira, inevitável, de “Deus”, que desponta com o iceberg das células-tronco. Mas, certamente, a navegação de mais longo curso, visceral e reveladora, deu-se na política e nos costumes.


Na política a falência dos modelos ideológicos que preencheram corações e mentes no pós-guerra - o comunismo na brutalidade da anulação individual arrastando milhões de mortos, e o capitalismo na selvageria do lucro sem limites, excludente de outros milhões-, serviu como alívio e esperança a quantos se enredavam em seus calabouços e muros e sobreviviam à boca do alçapão. Nos costumes, entretanto, é que as velas se abriram a todos os ventos. Assim que a mulher assumiu a liberdade de exibir o corpo de forma cada vez mais ostensiva e sem culpas e ganhou o salvo conduto para o sexo sem riscos que foi a pílula, a gangorra da repressão começou a se desequilibrar. As artes e a efervescência cultural criaram um novo “caldo cósmico” no qual a vida se recriou encontrando suas múltiplas formas de manifestação.


Mas ambos os caminhos exigem liberdade para sua completa realização, individual, ou coletiva. Assim, por um lado, a democracia, ainda que por imposição econômica, e, por vezes, ameaçada, tornou-se um bem da banda civilizada. Por outro, o indivíduo, como um soberano, delimitou sua existência como o território de seu reinado, por vezes com muralhas intransponíveis. Apesar disto não apeamos universalmente de nossas antigas montarias, pois igualar-se no poder, ou no indivíduo, exige compartilhar, abrir mão da dominação, da satisfação pessoal, que por vezes só é conseguida suprimindo, cruelmente, ou egoisticamente, a do outro.


Nem em todos os lugares, ou pessoas, a lua é um tear de memórias, os amores se reúnem em embornal de lembranças impagáveis e fazem suas celebrações se converterem em rituais de sal e promessas. De posse e permanência. Entrega e perdição. Agora mesmo, na Arábia, o governo proibiu que rosas vermelhas fossem vendidas e enviadas para comemorar o Dia dos Namorados.
A liberdade não pode ser uma pétala que cede e cai e o poder não tem o bárbaro direito de criar aceiros para a única, derradeira função de homens e mulheres, que é amar furiosamente uns aos outros.


Por isso, porque amanhã ela pode ser incerta, semeia hoje, em teus jardins, ainda que avessos, como um jardineiro fiel, as rosas proibidas da mulher desejada.

A Revolução Urinária

Que foice e machado nada, a verdadeira revolução mundial é vesical. Ou melhor, como direi, peniana ao invés de freudiana. O fato é que nossos indômitos governantes acabam de tomar atitude injustamente ainda não reconhecida pela sisuda Academia de Estocolmo com o prêmio Nobel. Os prefeitos do Rio e Salvador, que andavam caindo pelas tabelas, decretaram um choque de ordem nos genitais despudorados que andavam a destruir monumentos e sujar as ruas. A partir de agora quem for pego com a mão na massa, quer dizer com a mão no criminoso, ou mesmo sem a mão, mas com o terrorista urbano a solta fazendo xixi na vias públicas, será preso. Sem fiança. No Rio, 49 mijões, o que, reconheça-se, é uma taxa baixa, menor que dos assaltos a bancos e batedores de carteiras, já foi presa neste fim de semana.


Em Salvador, que tem ritmo próprio, ainda não foi iniciada a Operação Genital. Ao que parece, frenéticas reuniões na Prefeitura tem sido realizadas para definir as brigadas de voluntários e como será feita a abordagem do meliante. Ainda não há consenso na PM se o réu deverá ser algemado, se o ato deve ser interrompido ou a Polícia deve assistir passivamente o fim do gesto criminoso, e se deve ficar de olho no bandido ou disfarçar para não ser acusado de violência, coerção moral e similares. Também não está definido como agirá a Tropa de Choque se o sujeito se sentir inibido com a platéia toda armada e não conseguir completar a ação: se ela dará um tapinha nas costas de apoio ou se vai dar uma voltinha.


Um das ações que está prevista no decreto governamental é a realização do retrato falado de eventuais membros fugitivos. A Corporação tem reagido a idéia de ser testemunha no Tribunal e descrever diante do corpo de jurados e do público o calibre da arma e os pormenores de fluxo, velocidade, ângulo do disparo do jato, visto que tudo isto pode levar a identificação do verdadeiro transgressor e a liberdade de um “peru” ou uma “perereca” inocente. Afinal, não vamos esquecer, mulheres também tem rim.


Ainda não há consenso entre o MP e delegados como será a reconstituição do delito, em caso de dúvidas, e se a ingestão obrigatória de água para tal fim não invalidará a prova visto ter sido obtida, de certa forma, sob tortura. Cogita-se, aliás, como tem sido praxe nos governos atuais, de cercear o direito da imprensa de transmitir a reconstituição e filmar o réu, como se não fosse mais indecente o que já se transmite nos discursos políticos.


A Policia já alertou que não tem efetivo para cumprir a função o que vai levar a Prefeitura a criar seu próprio grupo de funcionários realizando concurso para Fiscal de Pinto (perdoem-me senhoras), gerando emprego e renda e provando que urinar ajuda a desenvolver a economia que, enfim, vai sair desta dicotomia de axé e desfile de escola de samba. Ao que parece a seleção dos novos agentes exigirá boa acuidade visual e agilidade para segurar, digamos, o touro a unha, caso o delinqüente, na maioria das vezes minúsculo, essa é a realidade e cada um sabe da sua, tente se esconder na toca da calça.


Está previsto que no carnaval, quando o crime prolifera, as mulheres serão alvo de ação especial visto que costumam agir em bandos que fazem uma rodinha enquanto a bandidona executa sua ação, por vezes abaixada e escondida pelo vestido ou abadá. Enfim, a Sociedade Civil não pode ficar de fora do progresso. Seja você também um fiscal da moral pública e não tire o olho da braguilha ou sainha alheia. Ali pode se esconder um foragido da justiça. Avante Brasil.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Da Estratégia das mulheres e a arte de guerrear

A estratégia militar tem seus mestres ao longo da história. De Alexandre, o Grande, a Aníbal o Cartaginês. Do barão francês Antoine-Henri de Jomini passando por Napoleão, até os modernos organizadores das guerras eletrônicas. São reverenciados pela capacidade de criar estratagemas e táticas capazes de imobilizar o inimigo e lhes conceder a vitória, mas a verdade, é que nenhum general de dez estrelas chega aos pés do poder estratégico de uma mulher.

Caso não tenha percebido, dedique-se a observar uma mulher quando fixa um objetivo a ser alcançado, especialmente se o mesmo diz respeito à presa indefesa do sexo masculino. Interrogue-lhes por meia hora e descobrirá a vastidão de artifícios, truques, disfarces, armadilhas, atos, ardis, negações, detalhes que elas usam como se estivessem manipulando exércitos e conquistando passo a passo as posições do inimigo, que acabam por assinar inevitavelmente a rendição, na cama, no altar, ou nos dois. É verdade caro leitor. A mulher determinada a conquistar seu príncipe encantado ou -vá lá que seja- o “sarado” da ocasião, aciona uma complexa rede de análises e combinações que sempre lhe conferem vantagem. Ou você ilude-se que conquistou alguma mulher sem que ela houvesse permitido antes? Você acha que em alguma ocasião conseguiu surpreendê-la, ao abordá-la, ou apenas cumpriu seu papel de visita esperada?



As mulheres possuem um sofisticado mecanismo de rastreamento de possibilidades, infinitamente superior a qualquer sistema de espionagem por satélite. Ao estrear em um ambiente, seja ônibus, bar, boate, festa, clube, ela rastreia todos os homens automática e inconscientemente, decifra-os, realça seus pontos fortes e pesa as fraquezas. Afinal é necessário que esteja sempre prevenida, contra eventuais abordagens, como um espião em alerta máximo. E se dedicarão, cúmplices, a trocar impressões com as amigas, embora muitas vezes, evite comentar exatamente aquele que lhe interessa, pois nem sempre se sabe o tamanho da cobiça de uma amiga. Em instantes desenharão a geografia de seu corpo, os vícios, a promessa de sexo inesquecível, de uma paixão torrencial, ou a ausência de futuro. Mesmo quando cede a uma relação que lhe doerá, será opção de sua alma, uma fraqueza, um pagar para ver, uma necessidade de risco, nunca um desconhecimento do parceiro, ou se preferir, adversário.



Quando almeja um homem verdadeiramente, a mulher é capaz de mover céus e deslocar o eixo da terra para fazê-lo dela. Vasculhará listas telefônicas, recorrerá a todos os conhecidos, voltará ao local onde o viu, até conseguir o mais planejado dos encontros casuais. Antes, escolherá a roupa do encontro com tanta preparação quanto um soldado que vai enfrentar a batalha de sua vida, verifica seu uniforme. Da barriga ligeiramente exposta, a uma temporária tatuagem no dorso, no ponto exato onde a imaginação masculina perde o freio. Usará pulseiras como um farol sinalizador, e os olhos parecerão sonares rastreando o fundo do mar à caça do seu tesouro de desejo.

Ah. A inquietação e as dúvidas de uma mulher que espera o destinatário de suas intenções, em uma festa! O batom, o perfume, o cabelo solto sobre os ombros como uma moldura dos deuses, nunca lhe parece o bastante. Até que ela o avista e o cenário da batalha se incendeia. Não há como fugir, de sua despretensão intencional. Não sabemos com certeza, mas o corpo de uma mulher, neste instante, mais que feromônios, deve liberar alguma poção enfeitiçadora, que nos amolece a alma. Seus movimentos tornam-se lânguidos e tomados de irreversível sensualidade. Receptiva, ela fica a um passo de miar como uma gata em pleno cio.

Seu riso será uma iluminura de estrelas em nosso destino. Ela se aproximará e sua aproximação acionará mecanismos tão complexos e sofisticados como se fossem dois módulos lunares se acoplando no espaço sideral. Se a conquista for dessas da convivência diária, ela lhe concederá pequenas visões de seu paraíso particular. Uma blusa desenhado os seios em ereção, as costas nuas fazendo vacilar suas convicções e, carga definitiva, capaz de romper a mais séria das linhas de defesa, as pernas bem torneadas sob um vestido de comprimento milimetricamente preciso, cruzadas e descruzadas, com a mais desleal das inocências. Com a boca úmida, lhe fará consultas sobre um livro, um dever, uma festa, um trabalho. Não importa. Manter-se-á próxima, com a proximidade de inimigo que se infiltrou entre suas tropas, buscando seus pontos indefesos.

Ela descobrirá seus gostos, seus gestos, cantará sua música, lerá seus livros, em um mimetismo de borboletas em seleção natural. Dançará com você no que lhe parecerá uma dança, mas que é na verdade um ritual de acasalamento. Sua generosidade, seu companheirismo, será seu cavalo de Tróia.



A nós homens, óbvios e básicos, restará apenas morde-lhes a nuca até que suas pernas tremam e gozar as delícias com elas recompensam a nossa derrota.


Cesar Oliveira - Jun/2001

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Carta a Italvar

Prezado Colega Italvar

Quando estiverem lendo esta carta infelizmente estarei viajando e não poderei participar deste encontro contigo, que não é o primeiro, nem será o último.

O primeiro, lá se vão trinta anos, no começo dos anos 80, quando éramos todos invencíveis e sonhadores, no início da faculdade. Cada um de nós era resultado de suas próprias circunstâncias e oportunidades de vida, diversos e estranhos atirados em um espaço comum, numa busca de realização coletiva. Cada um era um, apenas, e, talvez, ali, só você era todos nós. Porque todo grupo precisa de um farol, um incendiário que desfaça os aceiros que os separam e estabeleça as pontes em comum, as pegadas de um mesmo passo. Um leitor de sentimentos que leia as diversas diferenças e as torne menores aproximando os extremos, os que se distanciam por diferenças de opinião, condição social, comportamento, hábitos, ou mesmo por simples inibição pessoal.

Ao longo dos anos de faculdade o papel sempre foi seu. A irreverência, a molecagem de boa índole, a opção pela alegria no estado puro, sua definitiva adoração pela vida, o trânsito livre entre todos da turma e seus subgrupos com os quais dialogava com a mesma simplicidade e afeto, fizeram com que seu nome se tornasse uma unanimidade, e, ao contrário do que dizem, aprendemos que nem toda unanimidade é burra.

Na geometria das relações você não tinha arestas, nos retratos não tinha poses convencionais, no cotidiano seu ritmo era voraz. Talvez, por algum destes mistérios que o destino não explica, as três deusas que tecem o fio da existência te avisassem que a vida era para ser vivida com urgência, sem pausas, com todos os seus encantos, assentada no riso e na amizade, marcada pelo astral elevado.

Depois de formados continuamos dependentes de sua iniciativa para as reuniões de turma, organizadas, animadas e perturbadas por você. E, nestas ocasiões, onde estive em umas e outras não, o profissional se refazia aluno, o moleque reencarnava no doutor, o agregador encontrava-se com o melhor de si próprio e nós todos, alegres e inocentes, contagiados, nos refazíamos em brincadeiras e lembranças, em saudades e risadas.

Quando veio a notícia de sua adversidade, tão jovem, todos nós compreendemos o salto no trapézio, o malabarismo necessário para sua persistência e acusamos a injustiça. Na companhia dos mais próximos, no silêncio dos mais distantes, torcemos, ansiamos e os que tinham seus Deuses oraram. Acompanhamos cada informação repassada boca a boca. Alegrávamo-nos nas positivas, entristecíamos nas negativas.

Até que a notícia última nos chegou. Ouvimos, de certa forma, como órfãos. Ouvimos, de certa forma, como pais de uma falta. Ouvimos, de certa forma, como quem tem um revés e fica sem cais. Você tinha aprontado mais uma das suas e escolhido o 3 de Dezembro, dia de nossa formatura, para nos deixar.

Não sei bem dizer, dos que lá puderam estar, o que sentimos. A reunião, a tensão das falas, a irmandade do desamparo de quem partilha um bem e perda comum. É algo além de você, embora seja resultado do que você fez por nós.

Que sua missa seja de paz e conforto. Talvez a gente se reúna de novo. Você não nos deixaria desistir disso. Mas fique tranqüilo. Aconteça ou não, seu lugar está garantido, pois cada um de nós irá te levar de alguma forma, sempre com a memória e saudade que só cabem aos que fizeram o encontro e companhia valer a pena.

Por ousadia digo ser esta carta de toda turma. De forma pessoal, minha e de Mayra.

Até companheiro. Obrigado. Um abraço, Césinha.