quinta-feira, 31 de maio de 2007

A mulher que chorava...

A mulher chorando- Picasso


Anoitecia, ao deixar o consultório e voltar para casa, onde Átila e Ana Luisa me esperavam com suas expectativas e alegrias infantis. Apesar da luz ruim, na Senhor dos Passos, percebi uma mulher na calçada vindo em minha direção. Jovem, uns vinte e cinco anos. Usava vestido azul escuro com uma faixa branca na parte inferior. De pele alva, de alvura incomum por aqui. Não tinha beleza especial. Os cabelos eram curtos e claros, a ponta levemente curva em direção a face. O que chamava atenção é que chorava. Choro incontido, sem pudor, desatado. Constrangedor.

O passo era rápido, em desalinho, como se andasse bêbada, ainda que de incertezas. Fiquei em dúvida se a pressa era medo da noite ou da causa do seu choro. Não sabia se ia a esmo, do nada a lugar nenhum, como fazemos às vezes quando a vida de súbito nos rouba o ar, se buscava o abrigo de um lugar conhecido, ou a solidão, por vezes protetora, de um refúgio pessoal. Era uma mulher que chorava anonimamente na rua, desprotegida, imune aos que a olhavam. Percebi a bolsa apertada contra o corpo- última coisa que parecia lhe restar de sólido-, e o rosto inciso, de quem havia chorado muito.

Naquele instante era apenas uma mulher frágil, dissolvida, e sua fragilidade me comoveu. Guimarães Rosa põe na boca de um personagem: “ o que eu não sei -isso é que me mata” . E havia tanto que não sabia sobre aquele choro. Era possível que tivesse sido demitida, assombro diário, nessa economia amoral, fria, implacável e excludente. Amanheceria sem função e chorava pelo filho que deixaria a escola, o plano de saúde e o sonho do dia da criança, já próximo. Teria sido humilhada pelo chefe e chorava por ter de dobrar-se à necessidade? Ou ainda por estar com dor física e não emocional?

Talvez estivesse apenas indignada com os insultos do mundo, a barbárie, a fome, a ambição que faz iguais se dizimarem, o genocídio coletivo que assistimos imóveis, entre levemente culpados e profundamente indiferentes. Ou por ter sido vítima de inesperada ingratidão que lhe roubou a fé, a capacidade de acreditar e de confiar. Talvez chorasse por nada, como choram, às vezes, as mulheres que tem poros na alma. Mas não. Era choro maior, íntimo, como se de repente a vida lhe fosse insustentável e viver ardesse nos pulmões. De quem rompera com a esperança e seguia desnorteada, à deriva. Choro de amor, quase posso jurar. Como só as mulheres ainda são capazes.

Num impulso quis chamá-la, perguntar-lhe o acontecido, oferecer ajuda, mas como diz Fernando Pessoa o gesto tem uma imensa distância da intenção. Certamente que recuaria, assustada, temendo abordagem àquela hora já suspeita. Também não poderia acompanhá-la, pois o jantar me esperava e não podemos, embora devêssemos, simplesmente chegar em casa e dizer que demoramos na rua ajudando uma estranha que chorava de amor perdido.

Ela se distanciou. Entrei no carro e ao chegar a esquina ela invadia o sinal verde. Parei. Os ansiosos buzinaram. Esperei que cruzasse a rua, ainda chorando. Então fui para casa, rir da inocência dos filhos. No outro dia fui para a roça. Montei a cavalo, mas o choro daquela mulher, cuja dor parecia maior que lhe era possível suportar, não me saia do pensamento. Lembrei verso de Antônio Brasileiro –“ para nosso barco pequeno/ chegaram-se tão grandes mares.”

Mulher que chora. Eu não sei quem é você e é provável que nunca me leia, mas resolvi lhe escrever. E porque em meus receios e confortos deixei-lhe sozinha para atravessar tão imenso mar, venho aqui pedir-lhe desculpas, eu que, às vezes, também ando do outro lado da calçada.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Desamor

Ela se vestia de lua,
semeava gerânios nos meus presságios
e lançava seus desatinos aos longos
cabelos do meu desejo.

Mas sua carne de receios
alimentou os cães
e outros desencantos.

E, enfim, poeira de ossos
na minha memória,
ela dança nua.

sábado, 26 de maio de 2007

sexta-feira, 25 de maio de 2007

A morte e a morte do galo Chico Mendes

Reza a lenda, se é que lendas rezam, que as cidades-estado de Siena e Florença disputavam limites territoriais. Então combinaram que ao amanhecer, quando o galo cantasse, um cavaleiro de cada cidade cavalgaria em direção ao outro e aonde se encontrassem seria a fronteira. Siena escolheu um galo branco, bem nutrido e Florença, um preto e mal alimentado. O de Firenze, esfomeado, acordou mais cedo e seu cavaleiro conseguiu chegar até a vila do Castelo de Fonterutoli. Por isso a região passou a chamar-se de Gallo Nero e um galo preto ocupa até hoje os rótulos dos Chiantis, o mais celebre vinho da Itália.

Em tradições religiosas de vários países, o galo é uma criatura celestial e votiva. Simboliza a ressurreição solar e espiritual e seu canto anuncia o novo dia após um período de trevas. Nos países latinos é tradição popular a "Missa do Galo", numa alusão a fábula que conta que a única vez que um galo cantou à meia-noite foi na noite do nascimento de Jesus. Mas, sincrético, na África, ele é o animal preferido de dois dos sete orixás do Vudu: Papa Legba e Ogun. Papa Legba, ligado a São Miguel e São Pedro, é o guardião, o desenvencilhador das encruzilhadas do mundo. No Brasil, o galo é o omalá (conjunto de alimentos destinados ao Orixá ou divindade da Umbanda) de Oxun.

Reproduzido na arte cerâmica de Portugal e Itália o galo está ligado a lendas populares e, na França, ele é o símbolo nacional por excelência. Na poesia é o astro do mais famoso poema de João Cabral de Melo Neto, no qual um galo sozinho não tece a manhã. É certo que os galos devem ser perdoados por acordarem tarde, até porque passam o dia em exaustiva maratona sexual, que exercem sem pudor, satisfazendo de forma hedonista seus desejos mais carnais, com uma e com outra, quando não com alguma violência e ruidoso ritual, sem preliminares e conversa fiada. O ato, apesar de repetitivo, tem a rapidez que só um galo possui, embora alguma mulheres reclamem em seus parceiros da fugacidade do evento. Apesar disto não é fácil a vida de galo, com o harém sempre ameaçado, sujeito a traição à menor desatenção ou falha no serviço doméstico, pois sabemos que as fêmeas não costumam perdoar se o carnê não está em dia.

Nem todos os galos, entretanto, têm final feliz. Morei em um condomínio, com muitas casas, todas próximas. Ganhei um galo de um paciente, levei-o para casa e dei-lhe o nome de Chico Mendes, em homenagem ao mesmo. Chico tinha um relógio biológico próprio, cantando feito um desesperado durante a tarde e a noite e silenciando ao amanhecer. O que começou como insatisfação entre os vizinhos evoluiu para reunião extra de protesto contra meu galo.

Compreendendo que a sociedade não estava preparada para um despertar ecológico decidi levá-lo para a roça. Chico passou a reinar soberano, verdadeira estrela, no quintal lá de casa. Fim de semana fui almoçar com minha mãe e ela serviu um prato delicioso. Perguntei se era de criação e ela respondeu que era Chico Mendes, que andava muito abusado. A história novamente se repetiu, para minha consternação, mas ficou a lição: toda vez que você tiver por aí cantando de galo, seja você presidente, ou o que for, é sempre bom lembrar que tem alguém amolando a faca para preparar o almoço de domingo..

terça-feira, 22 de maio de 2007

Dia das Mães - Como reconhecer uma mãe



Uma mãe é facilmente reconhecível. Elas têm algo de pressentimento e leite. De alimento e permanência. Pois há igualdade entre bichos e humanos, borboletas e mulheres, senegalesas e inglesas, lobas e gatas, pretas e brancas, analfabetas e doutoras, camponesas e citadinas. Entre mulçumanas e cristãs, ortodoxas e ialorixás, desbocadas e religiosas, humildes e abastadas. Entre legítimas e as que não foram perdoadas. As damas e as de vida em flor. Como um decreto universal que as torna parecidas, por semelhança não escrita, por parecença de ventre, sem cor, religião, dogma, sem poderes outros que não o do corpo arrebatado de vida e mistério, de amor e fertilidade.

Uma mãe é facilmente reconhecível. Há, nela, qualquer coisa de brutal e milagroso. A força descomunal de repartir suas células em infinitas outras. Em olhos, cabelos, curvas, atitudes, gostos, gerando com sua Arca de Noé, seu cesto de cipó e veias, esteira de cordão umbilical, a passagem para outro humano. E o milagre de se repartir como cria, peito, dádiva, nas mãos, na dor de se abrir sem pudor, no parto, e beijar o filho como quem lambe o futuro e seu destino.

Uma mãe é facilmente reconhecível. Há, nela, algo de manjedoura e guia. De quem se sabe incapaz de julgamentos, de quem não abandona, não renuncia, não desiste da cria. E oferece o colo, quando vem o choro, a palavra quando vem o medo, o abrigo quando vem o desamparo, a sobrevivência quando vem a fome. De quem se lança como feiticeira a polir de encantos as pedras no caminho dos seus, a desenhar em irretócaveis traços de nuvem e delicadezas a eterna imagem e possibilidade da volta, a redimir com os olhos do afeto e perdão tudo que nos feriu, reinventando a si própria, como acalanto, apenas para que o mundo nos seja melhor.
Uma mãe é facilmente reconhecível. São todas únicas. Afinal são todas iguais.

O papel do caranguejo na abordagem amorosa


As mulheres que já não estão na faixa etária do, digamos, sub-30, compõem o que a demógrafa Elza Berquió, do IBGE, chamou em seu livro, de Pirâmide da Solidão. São mulheres autônomas, profissionais liberais, com independência financeira e competência sexual, separadas ou solteiras, que não encontram sua metade da laranja, nem um homem pra chamar de seu.

É certo que o início cada vez mais precoce da vida sexual feminina, além do impacto no aquecimento global, ampliou a oferta no mercado da sedução e do acasalamento, facilitando aos homens resolverem com duas de vinte, e módico investimento, as necessidades dos quarenta, mas não é só isto que está deixando estas mulheres sem parceiros para reconstruir uma família.

Decerto, também, que não é só culpa do papa de convicções neanderthais que disse ser o segundo casamento uma praga social, mas a verdade é que passado a fase do canibalismo e desforra – ou atualização muscular como dizem algumas- sexual que as mulheres costumam vivenciar na pós- separação fica quase impossível encontrar um homem que esteja disposto a construir uma relação permanente mesmo com casa, comida e roupa lavada. Aliás, a famosa atriz Zsa Zsa Gabor costumava dizer que não perguntassem a ela nada sobre sexo pois sempre fora casada.

Estas mulheres sozinhas que rolam pelos sites de encontros, vernissagens, lançamentos da moda, se não esperam mais o príncipe no cavalo branco, não perderam a ambição suprema de suas almas, que é o amor. Elas se cuidam, malham como atletas, tratam-se como modelos, usam os melhores cremes e, vá lá que seja, usam um botox aqui e ali. Vestem-se com elegância e são capazes de conversar sobre o declínio da civilização ocidental com a mesma facilidade que trocam uma dieta infalível, ou uma receita diet.

Livres e experientes são capazes de prometer e cumprir com esmero os desejos masculinos, mas exigem em troca companheirismo, bom gosto, indispensavelmente uma conversa inteligente, se possível alguma habilidade culinária, sensibilidade e - que elas nunca deixarão de gostar- firmeza de intenções. Enfim, um parceiro master-plus.

A diversidade de informação, ganhos e liberdade tem elevado o padrão de satisfação das mulheres, fazendo com que os homens, mais lentos nas adaptações, como dinossauros urbanos, tenham dificuldades em conquistá-las. Como não há bula, nem re-treinamento, os homens continuam abordando erroneamente as mulheres com padrão de exigência mais elevado.

Recentemente, almoçava com um grupo e uma amiga, médica, viajada, bem sucedida, mantinha agradável conversa sobre cinema e literatura, dois interesses que temos em comum. Até que o papo tomou o rumo dos relacionamentos e a queixa geral foi a dificuldade, a escassez de homem no mercado, corroído pela banalidade e pela crescente onda gay. E, entre um suspiro de desilusão e riso, me contou sua última experiência.

Estava com amigas em um aniversário, elegantíssima, vestido longo, a base da taça de vinho presa entre os dedos, como convém, quando foi apresentada a um homem que lhe pareceu atraente, tendo iniciado aquele rito de investigação desinteressada e casual que faz toda mulher antes de aceitar a cantada. A coisa já tinha meio caminho andado, embora ainda não o suficiente para dilacerar o vestido, quando ele atirou no próprio pé.
- escuta, adorei te conhecer, porque não saímos amanhã pra comer um caranguejo na Cabana da Cely?
-Agora imagine meu amigo, eu, depois deste investimento todo que fiz em mim, no sol de meio dia, com um porrete na mão – tac, tac, tac-, quebrando patinha de caranguejo, toda lambuzada! Nada contra os braquiúros mas no primeiro encontro? Que futuro isto pode ter? Com um mês eu vou tá onde? Encarando a maré vermelha e me acabando em cima da mesa no pagode em Cabuçu!

Nunca mais reclamei por ser alérgico a caranguejo. Deus, agora creio, realmente escreve certo por linhas tortas...

sábado, 12 de maio de 2007

Orelhone



O melhor de uma viagem, às vezes, é o que sai errado, o inesperado, o que não foi planejado nem pode ser dividido em nove vezes no cartão, nem rende milhagem. O mico é, às vezes, mais atraente que os cenários paradisíacos, as comidas típicas e as fotografias obrigatórias. Com a vantagem que vergonha não pode ser colada no álbum, nem filmada. Fica na memória para ser contado com algum grau de auto-ironia e complacência.

Fonte inesgotável de micos estilo king-kong são as viagens ao exterior. Desconhecendo os costumes e a língua estamos sempre à beira de um conflito internacional. Certa vez, em um grupo, com carros alugados, indo ao Vale do Loire, na França, paramos em um pedágio diferente, com uma cesta, que ninguém sabia como pagar. A fila atrás de nós foi um vexame quilométrico, só resolvido quando um enfurecido francês desceu do seu veículo e nos ajudou, mais por impaciência do que por solidariedade e com aquele olhar que te faz sentir um brucutu.

Também nesta viagem, os doze com os melhores trajes, as mulheres de longo, acabamos espremidos em uma cabine telefônica, em frente ao cassino de Monte Carlo, para passar a chuva. Isto por termos entrado no prédio de estacionamento pelo guichê de saída e ficarmos meia hora aos gritos, pelo interfone, com o computador, até que - embora eu desejasse que fosse a Caroline de Mônaco-, apareceu um guarda e numa língua gestual resolvemos tudo após ameaça de prisão. Até porque viajava conosco uma velha senhora, mãe de dois colegas e que, desbocada feito uma rameira, xingava o guarda de todos os palavrões que a última flor do lácio já criou.

Há desastres como o de uma conhecida que embarcou no avião errado e recebeu uma gozação geral e os alimentares porque, economizando ou não, há horas em que a fome fica maior que a dignidade e se come qualquer coisa. Há situações desconfortáveis, como um parceiro de viagem que fez redução do estomago e teve ressaca intestinal após comer um cordeiro patagônico com javali, prato que imagino ter sido o preferido dos tiranossaurus. O mesmo parava a Van do grupo - aterrorizado- durante passeio em Mendoza, a cada ação das suas enzimas digestivas.

Mas, impagável, somos nós maltratando o espanhol. Costumo ficar calado ou falar meu arcaico português de forma lenta, se possível que dê tempo até dos hermanos abrirem o dicionário para me traduzir. Mas o brasileiro aprende “saca la foto”, vira poliglota e a partir daí fala uma língua de fronteira, indecisa, embaralhando terminações vocais, num mimetismo polifônico indecifrável. Ou falam português bem alto, tentando o sotaque local, obrigando-os a ouvir quero “dôs”, como se dois fosse incompreensível. Afinal, espanhol é só botar a língua pra fora e mandar ver. “Je ne parle pas espanhol, pero mi português is very fueda”

Recentemente, na Argentina, estava na portaria do hotel, quando um cliente começou uma discussão. Alto, suando, gesticulando como Maria Bethânia cantando Carcará, o brasileiro vociferava no dialeto de Tarzan.
- Você não intiendê? Não falar mí língua?
O porteiro, símile de Rocky Balboa, balançou a cabeça e foi cuidar da vida. A mulher, que aguardava com os filhos, sugeriu que ele telefonasse para o guia da agência. Foi aí que o marido atravessou o lotado saguão, aos berros, gesticulado com o dedo mínimo e o polegar em riste e os outros dobrados, em direção ao apavorado funcionário.
- Eu quero um orelhone, eu quero um orelhone...

Se não foi deportado deve estar lá até hoje esperando o porteiro entender.

Enfim sós...

Este blog destina-se a manter acessível aos desavisados ou aventureiros leitores as crônicas que publicamos, quase regularmente, no Jornal Tribuna Feirense, em Feira de Santana, ou Santana dos Olhos D'Agua, como a tenho na memória.
Leia, comente, critique, divulgue, participe. Seu olhar de leitor é a razão dele existir.

Um abraço

César Oliveira