O amor é memória. Bioquimicamente, como dizem os cientistas, ou poeticamente, como creem os românticos, a permanência enfrenta o desenlace diário, em que o cotidiano vai aluindo o enlace amoroso e aproximando os finais. Sabemos que é do deslumbramento dos momentos a dois, que se vai compondo o feitiço das lembranças, os fios invisíveis que amarram uma vida na outra para as longas travessias. E que é da capacidade de completar o imaginário do outro, de criar instantes de arrebatamento, em cenários, textos, atos, que se constrói a imensidão do amor e se prepara o altar da moradia dos casais.
É claro que, em todos, e em especial no coração das mulheres, habita de forma inata a busca desta paixão definitiva, mas sabedores das fragilidades humanas e da volatilidade dos tempos modernos nós, pais, olhamos com angústia as descobertas de nossas filhas adolescentes. Afinal, todo pai cria a filha com desvelo de artesão, polindo-a com o balé, escola, idiomas, passeios, saberes e afetos, esperando que a vida lhe seja a melhor possível.
Inicialmente, torcemos para que não abandonem as bonecas - abandonadas; torcemos para que não encurtem os vestidos – encurtados; torcemos para que não sejam olhadas – olhadas; torcemos para não saber – sabendo; fingimos não ser verdade – sendo; torcemos para não serem beijadas – sendo; torcemos para não durarem seus romances – a princípio, incluídos apenas na moderna categoria dos “ficantes”, entidade abstrata sem vínculos funcionais ou dores amorosas.
Mas é evidente que, com a cumplicidade das amigas, abandonados os primeiros temores, sinalizado aos pais que a vida tem um ciclo biológico a ser cumprido, ampliado o calendário de festas e eventos de modo geométrico e o guarda-roupa e o salto em extensões piramidais, eis que ela está pronta a ser conquistada.
A partir daí a mãe funciona como uma ONG auxiliar, e o pai, como sistema automotivo e último agente de alforria. Estão incluídos uns pequenos truques, que os pais ouvem com cara séria e a fé mais improvável do mundo, sem deixar transparecer que fato similar já tenha acontecido no universo.
Foi assim que, sábado destes, minha filha pediu-me para ir com amigas a um bar moderninho. Depois das seis horas de arrumação, e do caos no quarto, deixei-a lá com as colegas. Achei-a arrumada demais para encontro tão factual, mas a pulga atrás da orelha estava de ponto facultativo, e voltei para casa e fui tomar um vinho com amigos.
A conversa ia rolando, quando ela me telefonou:
- Pai, tu me ama?
- Filha, pode ir direto ao assunto e pedir, que o risoto tá esfriando.
-Afff! Sabe o que é, pai? É que um amigo disse que queria me levar em um show no Kabana”s. Nunca fui lá. Queria saber como é. Fique “de boa” que Amanda Almeida e Lucas Bulos (nomes fictícios) vão comigo.
A menção ao local, com muita dança, e a frágil garantia dos colegas deveria ter me alertado. Mas, todo trabalhado no vinho (conselho: se beber, não atenda a pedido de filha), concordei. Na real, percebi haver mais alguém. Mas, o amor pode surgir em qualquer lugar, e pensei que podia ser pior.
Mais tarde, com alguma expectativa - e alívio, não nego -, fui buscá-las.
- Filha, foi bom o show? Legal o cuidado desse “amigo“ teu em te levar em um espetáculo. Como era o nome da banda?
Foi aí que ela me contou, e perdi o sono. Fiquei imaginando minha neta fazendo uma redação pro colégio, ou pedindo à mãe para tocar a música do encontro dela com o pai e perguntando quem estava fazendo o show - se Sinatra, Roberto Carlos, ou, vá lá, Victor e Léo. E a mãe respondendo:
- Não, minha filha, ele me levou pra ver a banda “Receba a Galinha Pulando”.
Ainda não sei se economizo algum dinheiro para pagar o analista de minha neta, ou gasto-o comigo mesmo. Afinal, era indisfarçável seu riso de felicidade na manhã seguinte.
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