sábado, 12 de junho de 2010

A Delícia dos Amores

Janos Makray


Pode ser que os amores de hoje pareçam menos insensatos que os de antigamente e as paixões morram mesmo a pequenas distâncias, ao contrário do que dizia Camões. Mas isso que se finda "mesmo à mudança mais ligeira", como nos lembra Shakespeare, em seu soneto cento e dezesseis, não deve ser o amor. Certo que é difícil falar de amor sem cair no lirismo fácil, nas hipérboles, nas metáforas, mas é que este é mesmo tecido de metáforas, hipérboles, de lirismo desmedido.


Clarice tem razão: há coisas indestrutíveis, incapazes de serem aniquiladas pelo tempo, que nos acompanham pelo tempo da memória. Uma delas são as amarras entre um homem e uma mulher que viveram juntos, em comunhão, certos momentos. Vínculos criados por quem viveu um encontro, uma paixão, uma possibilidade antiga, como acontece quando se realiza um desejo remoto que, de repente, se faz chance, que se inicia por uma combinação de acasos, que viola princípios e limites e permite a uma mulher êxtases desconhecidos. E não deixa escolhas. Desejo ao qual se pode renunciar, mas não se pode esquecer, que não se desfaz como tatuagem temporária. Paixão que, mesmo finda, te acompanhará como um souvenir, um hiato, um ponto luminoso, um lugar dentro de você que não poderá ser reocupado por nenhum outro homem ou mulher e que reordenará tuas forças para continuar vivendo. Será irremovível a passagem de teu homem ou de uma mulher a quem você permitiu que decifrasse todos os seus mistérios, como uma sacerdotisa, e sentenciou todas as suas confissões, todos os longos anos de espera.



Por mais que os tempos mudem e anunciem o apocalipse das relações há, ainda, parceiros que se entregarão rendidos ao ofício das palavras, que testemunharão com o movimento de seus corpos a coivara de desejos que os devora. Que irão além do indizível, pois terão tido a permissão de atravessar a cerca de espinhos da solidão alheia. É preciso, mais que nunca, apaixonar-se irremediavelmente, desfazendo as armadilhas do viver, olhando do avesso comum, deixando-se render pelo parceiro cuja alma é uma rodilha de feitiços. Por uma mulher cuja pele seja como um terreno de trigo exposto a ventos milenares que a moldaram e que tenha gosto de antigos mares extintos. Por um homem que se desfaça de todas as lições aprendidas só para lhe conceder todos os seus reinícios. Por uma mulher capaz de lhe fazer as doações mais íntimas, que lhe satisfaça, mas nunca o sacie, ou por um homem que faça com que você sequer se reconheça de tantas transformações que lhe provoca, ou das loucuras que comete. Como quem, indefeso ou indefesa, comete o pecado, apesar de conhecer as dores das condenações.



É necessário amar uma mulher que deseje a dor de sua posse, como a dor que se tem vontade que não acabe mais. Ou um homem que se faça perda irreparável a cada mínima despedida, como se, de repente, todas as suas células estivessem subitamente fazendo uma mitose simultânea. E que a fome de ambos seja como uma erosão devastadora, que desrespeita a distância, as diferenças, os impedimentos.
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Nestes dias tão dissolutos, que se busque uma mulher que ande nua sob um manto de chamas e versos, e um homem que se condene, realizado, à escravidão da mulher que ama. Aos que encontraram, que o destino lhes seja favorável e sua história reverbere aos quatro cantos do mundo. Aos que ainda procuram, apressem-se, antes que já não se possa mais contar grandes histórias de amor.