segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Palavras..

Escrevo porque as palavras, quando as sinto, tem frio. E precisam do calor dos olhos, do abrigo do papel, de proteger-se do inóspito, da rispidez com que as trato e, fora de mim, elas podem ser dóceis e acalentar-se de novos sentidos. Porque ditas, esvaem-se, exibidas, se transmutam, expressas, se recompõem. Porque do forno em que as liberto, ardem infernos, corre o Hades, há óleo fervente. Porque as firo com o martelo de Vulcano, na bigorna, dobrando-as, retorcendo-as, buscando uma obediência que elas nunca me têm. Porque as palavras, minhas, abrigam mortos, abrigam deuses e pecados, abrigam temores, risos escancarados e impróprios, sêmen a ser engolido, espesso, declaração de posse no cartório do céu da boca. Escrevo porque os desertos são vastos e lá apodreceram os inocentes, os mares são revoltos e lá todos os meus guias fizeram motins, porque os vendavais me atiçam, o desconhecido me alucina, porque as palavras copulam como devassas, messalinas, ninfomânas de sentidos, de reconhecimento, na minha alma.

Escrevo porque não sei, escrevo porque não me sei. Escrevo e nem sei se vale o escrito, porque já são outras as miseráveis que me dissecam, feito Harpias, com suas garras, a expor a carne, a anatomia das vísceras, os segredos de túmulo. Porque fiz cercas na infância, porque andei a cavalo, porque o carro de boi ainda canta o canto melancólico de suas rodas, dia e noite, porque as febres ainda não cederam, elas me dizem. Porque me ancoram, me sinalizam, me permitem manter a lucidez do outro, o que janta no horário combinado e cumprimenta os senhores e as leis. Porque não me preciso, porque me impreciso, porque ordenei massacres, porque fui aonde não deveria ter ido, pisei areias movediças, andei em labirintos e converso com fantasmas, porque tapeei Cérbero, o cão de três cabeças e beijei as bocas malditas, porque beijei as bocas, porque beijei e trago as impressões digitais queimadas nas labaredas do ventre, dado, da mulher.

Porque sofro de silêncios intermináveis, atávicos, porque conjuguei orações profanas, porque tenho distâncias impercorríveis entre o que sou e o que me faço ser, porque não me compreendo e nem me explico, eu me rendo às palavras. Porque elas são minhas rezas, meu xibiu, meu código, minha ponte levadiça, minha tábua de salvação, minha expiação, analgésico, comida, manto, tragédia e glória.

Porque assim posso dar mesmo o que não tenho, o que me é escasso, porque assim posso esperar que tu, fêmea, destino, busca, me salve da penúria...