sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Pequeno acalanto para a memória

Olympia - Rene Magritte

Dizem que a paixão de uma mulher pode passar, a sua memória nunca. Tê-la, é ocupá-la, inscrever detalhes na sua alma e pele, sem renúncias. Findo o tempo de acontecer, esgotado ou não as possibilidades, a calmaria virá, o beijo que se pediu para não beijar em mais ninguém e as danças se diluirão, mas o possuído não se desocupará.

Então, impagável que é, uma hora qualquer, ainda que por um segundo, ela lembrará. Atiçada por encontro casual, um aceno, uma vista da noite entre a lagoa e o mar, uma música, um Outubro qualquer. E ouvirá o que ele diria: " eu digo que é de tua permanência e entrega, de tua fala ancestral e capacidade de refazer mistérios e reatar o rumo das rotas perdidas no mar, de tua alma semeada de lírios e alegorias que me teço homem.

É dos teus horizontes, aonde, manso e indefeso, o sol, em arreio, vem se pôr, que se faz o alcance de meus olhos. E, se, nos dias de chuva e distância o mundo inteiro se encharca de tua falta, na tua vinda minhas alegrias de menino se enfeitam de alecrins e esperanças, das taças em comum, e minhas ruas de pedra e, às vezes, escuras, se enchem de velas, de lampiões e candeeiros, pra tornar segura a tua passagem.

De tua voz na profana confidência dos sentidos, promessas de não abrir mão e ser irremovível, de tua oferenda de cuidados e tatuagem de paixão no meu destino, ergo meu abrigo de sonhos e futuros, como os antigos que faziam suas casas com o que parecia insustentável, de óleo de baleia, ostra moída e barro e que, no entanto, resistiam ao açoite dos tempos ruins.

Assim, te proponho o amor dos que vivem distraídos, e oscilam entre a inocência da menina e a loucura dos instintos, dos que ousam domar os limites e não temem o fogo das condenações, dos que não se negam e cedem a primeira vez ao insensato e navegam os ventos revoltos como uma oferenda dos deuses à suas velas escancaradas.

Enquanto o desejo dilacera nossas roupas ao dançarmos te proponho a parceria dos que têm sede, dos que entrelaçam os dedos e as fomes e rezam suas rezas mundanas na comunhão das línguas, na margem delicada e enlouquecedora dos lábios entreabertos, dos que se perpetuam em cio e gozo irrepetível, e deixam escorrer em choro e sêmen sua conjuração de amores.

Na leve embriaguez do vinho anúncio em teu ouvido e dorso meus pedidos e teu corpo faz confissões despudoradas. As bocas tecem a indecente confidência: te amo, sem as regras do ofício, como se o manto dos cardeais os protegesse dos medos e temores.

Assim que, teu homem realizado, antiga vontade adiada, de beleza e encanto, de rédeas inesperados, te envio cartas enquanto te fazes esquiva e rede de pescador, para que te tome derradeira e sacerdotisa, sem que nada mais, além dos céus, te esconda, sempiterna e nua."

Como uma eclipse dura um momento, mas ela sabe que entre o encontro e o resto de sua vida esta doação habitará a memória da ausência, que não finda de passar e nunca cede - aceiro e agonia-, a outra ocupação.

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