Amo quando a cidade desperta vestida de neblina, como uma peça fina e delicada a cobrir seus pudores, a amenizar a dureza de seus contornos e de seu cotidiano, como se, de repente, fosse de céu, apenas, o horizonte de nosso olhar.
Amo quando estes fiapos de vento do mar, vindo das bandas da Bahia, resfriado na evaporação das águas, nos domínios de Yemanjá, se fazem feirenses, desmanchando-se feito amante no cio nos braços matinais e domadores do calor sertanejo, que limita seu viajar e o transforma em vapor esbranquiçado e cerração urbana.
Amo quando esta neblina silenciosa e cedeira vem e invade nossos corpos sob as cobertas, feito companheira e amada, cúmplice de sono e sonhos, neste passar sem destino que é o dormir. E quando empurra a manhã para depois, como se o dia pudesse custar a começar, a vida não fosse o desencanto de ser, e tudo se fizesse nesta preguiça de coisa alguma, neste tardar de não ir.
Amo quando esta festa de névoa e bruma faz parecer que abrir os olhos é inventar um sertão de fantasia, algodão-doce de menino, brincadeira de circo, feitiço de esconde-esconde, das ruas descalças, das cores mal pintadas, dos homens maus, das exigências e ordenações, das obrigações inevitáveis.
É como se fosse possível dançar nu, de nobrezas, títulos e vergonhas, por entre as árvores, até o orvalho mais derradeiro de suas folhas, de suas flores de enfeitar ilusões e flutuar nesta esteira de ar, como quem adormece sobre a pureza e a ternura depois de uma longa noite de amor.
Amo a cidade disfarçada sob a cor única de seu véu, a Feira, que lava suas dores neste anonimato urbano, como um abraço sem distinção de credos e ruas, todas iguais, como uma redenção do imaginário, sem rudezas, como se tropeiros tangessem, ainda, seus burros com barris e caçuás, suas boiadas, na poeira, e apenas o aboio pudesse nos guiar enquanto o álibi deste vento protetor e liquefeito cerca as lonjuras para quem acorda.
Amo a cidade rodeada de neblina, como se estivesse num cesto ao avesso e o céu fosse chão, e os bocapius pudessem ser abarrotados de esperanças nestas manhãs que se fazem num tecer de artesão, e não no correr de cavalos encantados, mas na lentidão maturada e musical de um carro de boi.
E, quando o sol se assume de responsabilidades e lentamente começa a desnudar minha aldeia de sua capa de inocência e serenidade para devolvê-la à agitação cotidiana e urgente, me desfaço. Mas, enquanto for este inverno, viverei de me reinaugurar, ainda que por breve ser, sob o véu de Santana.
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