segunda-feira, 23 de julho de 2007

O perigo está no ar

Diz um pensamento de John Donne que a morte de qualquer homem me diminui, porque a humanidade me contém. Banalizados pela morte cotidiana, desenvolvemos, como defesa, a indiferença, a “normalidade psicológica” ou então nos recusamos a ler, ouvir, ou ver as notícias, nos mantendo iludidamente protegidos.
Revejo, desde ontem, as terríveis imagens que registram o acidente da TAM, em Congonhas, na maior tragédia da aviação brasileira. E, embora não tenha nenhuma ligação com as vítimas, exceto ser parte da humanidade, me sinto prostrado, com um leque de sentimentos que vai da fúria à indignação, do medo à consternação pela dor coletiva.

Neste mundo de hoje é capaz de alguém perguntar porque, já que não tenho nada a ver com o fato. Não é de estranhar. Estamos nos tornando pessoas cada vez mais isoladas onde qualquer sentimento de solidariedade soa hipócrita. Não importa se parecer hipócrita, mas tive lágrimas nos olhos, vendo uma mãe descobrir seus dois filhos na lista de mortos. Talvez seja apenas a irmandade de também ser pai. Talvez. E de quem teme o dia a dia dos filhos, expostos a todos os riscos, nesta sociedade desigual e irresponsável.

A fúria, entretanto, é ver uma tragédia que poderia ser evitada. Não se trata aqui da crucificação pessoal do presidente, mas de um governo, que se mostra incapaz de resolver uma crise aérea, por falta de gerência, de autoridade, por tolerância com um Ministro de Defesa, amorfo, inadequado, e líderes que vão de declarações amebianas do tipo “relaxa e goza” ao cinismo do Mantega de que é o “preço do sucesso”. Tal nível de descompromisso, de responsabilidade, não é aceitável, nem tolerável.

Enquanto isto a Infraero é denunciada pelo TCU, e por uma empresária, como um antro de corrupção de todo o tipo, que transforma os aeroportos brasileiros em redes de shopping mais do que em rede de vôo. Do outro lado temos uma agência reguladora, ANAC, que serve apenas para apadrinhar companheiros, tendo, reiteradamente, mostrado sua ineficiência durante toda esta crise, sem sequer ser capaz de enfrentar e regular as empresas de aviação, que fazem overbooking à vontade, sem nenhum tipo de interferência governamental.

Já não importa se o piloto tocou a pista “ além do ponto de toque”, se os freios falharam, o que é quase impossível no Airbus. A estupidez é que a pista de Congonhas foi liberada sem estar em condições ideais de pouso, como mostram as conversas entre torre e pilotos, quando outros aviões já haviam derrapado e, quando, na véspera, como um triste alerta de uma tragédia anunciada, um avião da Pantanal foi parar na grama, local onde pastam bois e não aeronaves. Ao longo dos anos, também é verdade, não se respeitou o entorno do aeroporto, porque é típico dos políticos brasileiros a tolerância com o erro, sempre mais lucrativo do que o desgaste do enfrentamento.

Nenhum sistema aéreo do mundo, registra, em tempos modernos, duas tragédias de tal proporção em tão pouco tempo. Nem nos confins do planeta, onde se voa por intuição e reza. Portanto, é nítido, claro, que o conluio da corrupção, com a irresponsabilidade técnica, falta de planejamento, inadequação de infra-estrutura, treinamento e equipamentos, estão nas raízes desta tragédia, cruel, bárbara, violenta, dolorosa. E, em cada uma delas, pode ser encontrada a digital de um governo omisso, sem liderança, sem cadeia de comando, retórico, conivente.

Deus, na idéia que cada um tem dele, ajude a todos a suportarem a dor inenarrável de quem teve os seus carbonizados, de quando a vida é amputada, não pelo inesperado, que sempre há de acontecer, mas de quando poderia ter sido evitado. E eu, diminuído, peço ao Deus meu, de como o entendo, me ajude a ser menos emotivo, a agüentar a vida como ela é, e os leitores desta Tribuna a me perdoarem por repartir com eles este sentimento pessoal, indignado, de um homem comum.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Ah se ela dissesse...



A primeira vez que ela apareceu, flor do meu acaso, ficou determinado nas tábuas de lei, lá dos céus, o inicio do cisma entre meu passado de incertezas e o futuro improvável, embora ainda não soubéssemos que estávamos na chuva e ela iria nos molhar. Até o dia em que ela surgiu dançando o baile imaginário, numa saia de conteúdo improvável e sem nenhuma certeza estatística de que aquilo era de verdade e não uma ilusão de óptica, uma epifânia de quem não tragou e não duvida da fé.
Mas eu a vi na retina cansada destes olhos meus que, um dia, ainda muito distante, a terra há de comer, sem o sentido bíblico da coisa com a qual eu a devoraria, e senti o abalo nas minhas placas tectônicas, o sismo na minha abissal fossa sentimental. Desde então tudo que era ilegal, imoral ou que engorda, a metafísica, a oratória e o perfil do colesterol mudaram ao sabor dos seus encantos e do arco-íris de seu riso. Mas como tudo que me acontece além da linha do horizonte, não sai como rezam as lendas e o horóscopo chinês, ela deixou meu coração no bung-jump existencial, oscilando como um samurai bêbado, num haraquiri de fazer inveja a piloto japonês.

Ah, mas se ela soubesse que, desde aquela vez, em que veio ao meu mundo tal qual uma Eva, sem a parreira, e viu a maçã virar sobremesa, eu dividiria o universo em dois hemisférios, abaixo e acima do seu piercing no umbigo. Ah se ela dissesse que é louca por mim e que ficaria no meu corpo feito tatuagem pra me dar coragem de seguir viagem e outras canções.
Ah se ela dissesse que é louca por mim e batesse a porta do seu casulo para nunca mais voltar e fizesse comigo uma casa no campo. Eu juntaria as mãos para o céu e agradeceria por ter alguém que eu gostaria que andasse comigo na rua, na chuva, na fazenda e na casinha de sapê, que a vida nada mais é do que esse velho cantar de ilusões.

Se ela soubesse que por ela eu aprenderia uma nova língua, decifraria os sinais de fumaça, comeria manga com leite e mudaria a ordem das constelações celestes para que seu riso passasse a orientar os navegantes solitários como eu.
Se ela soubesse que pularia de para- quedas e contaria a história do mundo no seu ouvido feito uma Sherazade online e com segundas intenções, para garantir que funcionaria regularmente por ser sábado e outros dias da semana, por mais que mil, por todas as noites de minha vida, perdido no pôr-do-sol dos olhos dela que acontece todos os dias entre lugares tão distantes como a primavera e o verão, o pólo norte e sul, o equinócio e o solstício.

Por ela aprenderia a dançar, o nome das flores, cavalgaria o minuano, andaria sobre os telhados e por seu beijo removeria montanhas e iria a Maomé e a tornaria meu orixá regente. Só por ela, tão linda, tão linda, tão linda, que confunde meu sono e sonho, eu desviaria a rota dos cometas e a hora de Greenwich.
Eu faria tudo diferente, sem meter os pés pelas mãos. Ah! Eu acordaria. Mas só se ela dissesse, se ela dissesse, que é louca por mim...

sábado, 7 de julho de 2007

Estio

Não tenho dias santos. Desconheço os hiatos do calendário. Não fiz escolhas com prazo de

amarração. A vida e as ausências ressoam com seu dobrar interminável. Tenho prazer nos dias

destinado ao sagrado e as chagas não se atemorizam nos dias úteis. Existo, talvez. Nomeio o

tempo e seus significados, pelo faltar...

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Conto - A Náusea


O beijo -Klimt


O que ele não podia suportar era a clareza irrefutável da realidade. Ao desespero de qualquer origem, sobreviveria. Mas não à realidade que não podia ser modificada. Saber que, dia após dia, viveria sem a possibilidade de ser feliz inteiramente, como um relógio em que sempre faltasse uma hora e os ponteiros nunca pudessem completar a volta.

Seus ossos estavam completando centenas de anos, desde aquela noite em que lera as cartas que ela escondera. Eles se quebravam a cada vez que pensava nela e voltavam a se refazer com o alívio do sono, apenas para se partirem novamente, em centenas de pensamentos e pedaços, quando acordava, e a desejava, ela arrancando o travesseiro de sua cabeça, estendendo-o, e cravando o corpo dela em cima do seu feito bicho-caça que domina a presa, a fome desesperada de fêmea e o gozo que permanecia em seu corpo, quando se afastava, fazendo com que, mesmo terminado, ela continuasse tendo espasmos súbitos, depois e nos anos seguintes, a cada lembrança, ou quando sentia que ele escorria de dentro, em novos gozos, só dela.

Mas sabia que não podia livrar-se mais da imagem do corpo dela dançando com outro, como o seu próprio, a mímica de intenções incendiando o vestido, num brilho e vontade de iluminar mil mirantes, a alma se deliciando em insinuações e dizeres, em concessões ilimitadas, o vinho compartilhado de cumplicidades e revelações de milênios, antes ocultas, a inocente e a rameira no mesmo desejo, a boca entreaberta dizendo sim e aprendendo novos percursos, a fotografia que se perpetuará por dezenas de encarnações antes de se apagar, a memória que, tomada, jamais pode ser reocupada, como um feitiço que não liberta.

E, como um desejo nômade de dor, um sono inútil de dormir, uma náusea sem antídoto, ele as beija no jantar...