Diz um pensamento de John Donne que a morte de qualquer homem me diminui, porque a humanidade me contém. Banalizados pela morte cotidiana, desenvolvemos, como defesa, a indiferença, a “normalidade psicológica” ou então nos recusamos a ler, ouvir, ou ver as notícias, nos mantendo iludidamente protegidos.
Revejo, desde ontem, as terríveis imagens que registram o acidente da TAM, em Congonhas, na maior tragédia da aviação brasileira. E, embora não tenha nenhuma ligação com as vítimas, exceto ser parte da humanidade, me sinto prostrado, com um leque de sentimentos que vai da fúria à indignação, do medo à consternação pela dor coletiva.
Neste mundo de hoje é capaz de alguém perguntar porque, já que não tenho nada a ver com o fato. Não é de estranhar. Estamos nos tornando pessoas cada vez mais isoladas onde qualquer sentimento de solidariedade soa hipócrita. Não importa se parecer hipócrita, mas tive lágrimas nos olhos, vendo uma mãe descobrir seus dois filhos na lista de mortos. Talvez seja apenas a irmandade de também ser pai. Talvez. E de quem teme o dia a dia dos filhos, expostos a todos os riscos, nesta sociedade desigual e irresponsável.
A fúria, entretanto, é ver uma tragédia que poderia ser evitada. Não se trata aqui da crucificação pessoal do presidente, mas de um governo, que se mostra incapaz de resolver uma crise aérea, por falta de gerência, de autoridade, por tolerância com um Ministro de Defesa, amorfo, inadequado, e líderes que vão de declarações amebianas do tipo “relaxa e goza” ao cinismo do Mantega de que é o “preço do sucesso”. Tal nível de descompromisso, de responsabilidade, não é aceitável, nem tolerável.
Enquanto isto a Infraero é denunciada pelo TCU, e por uma empresária, como um antro de corrupção de todo o tipo, que transforma os aeroportos brasileiros em redes de shopping mais do que em rede de vôo. Do outro lado temos uma agência reguladora, ANAC, que serve apenas para apadrinhar companheiros, tendo, reiteradamente, mostrado sua ineficiência durante toda esta crise, sem sequer ser capaz de enfrentar e regular as empresas de aviação, que fazem overbooking à vontade, sem nenhum tipo de interferência governamental.
Já não importa se o piloto tocou a pista “ além do ponto de toque”, se os freios falharam, o que é quase impossível no Airbus. A estupidez é que a pista de Congonhas foi liberada sem estar em condições ideais de pouso, como mostram as conversas entre torre e pilotos, quando outros aviões já haviam derrapado e, quando, na véspera, como um triste alerta de uma tragédia anunciada, um avião da Pantanal foi parar na grama, local onde pastam bois e não aeronaves. Ao longo dos anos, também é verdade, não se respeitou o entorno do aeroporto, porque é típico dos políticos brasileiros a tolerância com o erro, sempre mais lucrativo do que o desgaste do enfrentamento.
Nenhum sistema aéreo do mundo, registra, em tempos modernos, duas tragédias de tal proporção em tão pouco tempo. Nem nos confins do planeta, onde se voa por intuição e reza. Portanto, é nítido, claro, que o conluio da corrupção, com a irresponsabilidade técnica, falta de planejamento, inadequação de infra-estrutura, treinamento e equipamentos, estão nas raízes desta tragédia, cruel, bárbara, violenta, dolorosa. E, em cada uma delas, pode ser encontrada a digital de um governo omisso, sem liderança, sem cadeia de comando, retórico, conivente.
Deus, na idéia que cada um tem dele, ajude a todos a suportarem a dor inenarrável de quem teve os seus carbonizados, de quando a vida é amputada, não pelo inesperado, que sempre há de acontecer, mas de quando poderia ter sido evitado. E eu, diminuído, peço ao Deus meu, de como o entendo, me ajude a ser menos emotivo, a agüentar a vida como ela é, e os leitores desta Tribuna a me perdoarem por repartir com eles este sentimento pessoal, indignado, de um homem comum.
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