Fui criado na roça, minha aldeia, à luz do candeeiro e do carro de boi. Aos dez anos, meu pai, em busca de educação melhor, levou-me para Salvador. Fui morar sozinho com meu irmão e depois em pensão. Ele sempre dizia que o que precisava ser feito tinha de ser feito. Depois fui para Brasília, São Paulo e voltei para Feira. Mas não para a casa de meus pais.
Criar filhos é uma viagem ao avesso em que vemos o tempo lhe somar anos enquanto os seus se gastam. É a experiência maior da vida humana. Não são apenas as memórias e a sensação de ter se dado a eles, ao amor indecente e absoluto que eles te exigem, e retribuem, que te consagra e realiza. É a oportunidade de nos melhorarmos em outro, sem nossos erros, a barriga da preguiça e os amores incertos. A realização de lhes dar régua e compasso, limites e princípios para vencer, embora, por vezes, esqueçamos que os filhos nos decifram em silêncio e nos criam, mas à sua própria imagem e leitura.
Adivinhássemos o futuro, desfrutaríamos mais desta relação, renunciaríamos mais as exigências de fora para nos abastecermos dos seus abraços e descobertas. E, dormiríamos, nós todos, em histórias e fantasias intermináveis.
Criar os filhos, doer suas dores, viver seus temores e aprendizados, perder o sono na sua febre ou ausência, caminhar de mãos dadas numa praça ou num sonho, nos eterniza. Faremos escolhas por eles, nem sempre as melhores, muitas vezes com intenções que temos com nós mesmos, esquecendo que a vida só se faz para seu dono. Cruzaremos a longeva e barulhenta infância e adolescência -o tempo mais doce do tempo- às vezes sem perceber a progressiva e inexorável redução da dependência conosco. Acostumamos-nos com o barulho de suas múltiplas vozes, sua agenda de compromissos e, por vezes, exigências, a ocupação expansiva da casa, da cama e dos espaços de nossas vidas achando que será para sempre.
É que, embora não acreditemos e ninguém nos prove o contrário, filhos crescem. E partem. E farão de sua partida a despedida sem fim, deixando em seus quartos um troféu das competições, uma última risada, um diário esquecido, um vestido abandonado por ser infantil, um vazio que parece nunca acabar de ser olhado.
Um dia seu filho mais velho irá embora, para a faculdade, e você sentirá que sua invenção de homem tomou rumo próprio e lembrar-se-á do dia, mais cedo, que você também partiu e pensará em infinitos conselhos que acabará não dando, esquecidos no abraço. Na volta para casa, entre feliz e partido, acomodar-se-á na sua falta.
Dois anos depois sua filha irá embora e você e sua ausência será chorada às escondidas, porque apartar, disse-me meu pai, nesta quarta, ao vê-lo no cemitério, precisa ser feito. Sem o ofício do cotidiano os horários se embrulharão, a casa silenciosa se ressentirá do revés, como uma árvore sem vento, sem folhas, sem deveres. Que não abriga, nem sombreia. E, nesta reinvenção de si, de seu lar, ecoarão apenas seus próprios alaridos, sem bênçãos ao dormir. E os medos serão só seus, sem a redenção matinal de suas crias.
Encontraremo-nos nas férias, viajaremos, faremos muitas refeições juntos, e, um dia, os netos atiçarão a árvore, mas eu sei, eu também não vim, que filhos não voltam para casa.
3 comentários:
Olá!
Leio e aplaudo todas as suas envolventes crônicas. Elas parecem fragmentos do que vivo ou já vivi.
Abraço.
Acho bom que não voltem, porque se não voltam é porque deu certo.
Gostei dos 4 na foto.
Abraços!
A existência de filhos de pais como você, é que nos dá a certeza de que o mundo ainda tem jeito.
Parabéns!
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