sexta-feira, 30 de abril de 2010

Exílio da cultura feirense


tela de Juracy Dórea


A cultura de Feira vive em permanente exílio. Na segunda cidade do estado não há projeto cultural definido, demarcação de identidade cultural ou otimização do potencial econômico, educativo e de valorização da vida que a cultura permite. Esta situação decorre, sobretudo, de não termos uma Secretaria de Cultura capaz de atuar como agente catalisadora das múltiplas manifestações culturais e unificadora dos atores do setor, exatamente por ser destinada à acomodação política o que impede sua ocupação por lideranças com domínio técnico.



Ao longo dos anos, tivemos apenas uma política de eventos dispersos e desintegrados. Com a maior parte das verbas alocadas na Micareta -festa padronizada e mercantil- e no São João -cada vez mais desfigurado pelo axé-music-, restam pouco recursos para viabilizar ações culturais.
A Fundação Egberto Costa não consegue cumprir de forma plena os objetivos de seu Estatuto, e a menina dos olhos - o Museu Parque do Saber-, apesar do eficiente diretor e de ser um bom espaço educativo e científico, não é, em essência, um instrumento cultural. A Secretaria de Cultura, esvaziada pela Fundação, dedica-se ao Esporte e Lazer. Culturalmente, tornou-se irrelevante e seus espaços de ação são limitados. Os teatros apresentam entraves funcionais, o fervente e insalubre Mercado de Arte está descaracterizado e transformado em mero espaço comercial, e o Museu de Arte Moderna, salutar criação de Juracy Dórea e José Raimundo Azevedo, está aquém do seu potencial. O Pró-Cultura é um projeto que não consegue tornar real a captação de recursos na dimensão exigida.


O patrimônio arquitetônico vai sendo impiedosamente destruído, à exceção do Casarão dos Fróes da Motta salvo pela Fundação Senhor dos Passos que, aliás, realiza ações de preservação da memória, a exemplo do excelente acervo de filmes de curta duração que resgatou. E o Casarão dos Olhos D’Àgua que foi- vá lá- restaurado.

O agente cultural mais ativo é o CUCA, da UEFS, dirigido com competência por Selma Soares, que, apesar da limitação de recursos, desenvolve ações contínuas, como o Festival de Sanfoneiros, exposições, teatro, cinema de arte, Caminhada do Folclore, e algumas inovadoras, como o resgate do Bando Anunciador, Pôr do Sol, o Aberto do Cuca, entre outras.
Apesar das inserções do CUCA, a UEFS, com sua massa cultural e pós-graduações, mantém certo isolamento, quando, por ousadia e obrigação social deveria mapear, discutir e oferecer uma proposta cultural não internamente, mas à cidade, sugerindo diretrizes aos órgãos efetores. Aliás, em recente conversa do Tribuna Cultural com artistas, sugerimos um encontro sobre cultura na UEFS que permitisse subsidiar estas diretrizes. A UEFS tem o dever e a capacidade de desenvolver projetos de pesquisa e captar recursos junto aos órgãos de fomento, direcionando-os ao estudo da cultural local e inserindo-se na comunidade de forma mais protagonista.

Quanto ao estado, seu Secretário de Cultura desconhece Feira. Suas falas por aqui se revestem de mediocridade e indiferença. O Centro de Convenções segue inconcluso, sob um festival de desculpas esfarrapadas de suas lideranças. Já o Amélio Amorim é um monumento ao descaso e um desrespeito à comunidade e memória local. O teatro e as salas do CCAM realizam algumas atividades, mas o Complexo Carro de Boi segue um processo de destruição que só merece o repúdio da sociedade feirense.

A peça Decameron fez sucesso aqui, mas é um retrato da improvisação. As cadeiras não têm numeração, a iluminação, bilheteiro, ingresso, água mineral, cadeiras, etc, são pagos pela produção. Os camarins são uma vergonha. Enfim, não temos um teatro que permita que produções mais elaboradas sejam trazidas, hoje um trabalho hercúleo de Edson Porto. A plateia de teatro, que já lota peças e shows, precisa de continuidade para que se mantenha cativa e se multiplique. É vergonhoso e absurdo não termos um teatro completo. O governo do estado poderia, ao menos, adaptar o Amélio, dando-lhe condições de funcionar como um espaço teatral de verdade.

É preciso agir. Que as Secretarias de Cultura e Educação ajam integradas, que a Fundação Egberto Costa seja pró-ativa, treine técnicos e coloque-os à disposição de quem precisa elaborar projetos para captar recursos, e fomente a participação nos editais, afinal a cidade será beneficiada. O mais importante, entretanto, é que a Secretaria de Cultura adquira porte, dimensão, estatura, para que seja capaz de colocar o estado, CUCA, UEFS, Secretaria de Educação, DIREC, CDL, Galpão de Arte, grupos populares, à mesa, e todos juntos discutam a imagem física, imaginária e identitária da cultura feirense, viabilizando um projeto integrado, único e permanente, que anistie a cultura feirense do seu degredo e permita o fim do seu exílio.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Receba a Galinha Pulando




O amor é memória. Bioquimicamente, como dizem os cientistas, ou poeticamente, como creem os românticos, a permanência enfrenta o desenlace diário, em que o cotidiano vai aluindo o enlace amoroso e aproximando os finais. Sabemos que é do deslumbramento dos momentos a dois, que se vai compondo o feitiço das lembranças, os fios invisíveis que amarram uma vida na outra para as longas travessias. E que é da capacidade de completar o imaginário do outro, de criar instantes de arrebatamento, em cenários, textos, atos, que se constrói a imensidão do amor e se prepara o altar da moradia dos casais.


É claro que, em todos, e em especial no coração das mulheres, habita de forma inata a busca desta paixão definitiva, mas sabedores das fragilidades humanas e da volatilidade dos tempos modernos nós, pais, olhamos com angústia as descobertas de nossas filhas adolescentes. Afinal, todo pai cria a filha com desvelo de artesão, polindo-a com o balé, escola, idiomas, passeios, saberes e afetos, esperando que a vida lhe seja a melhor possível.



Inicialmente, torcemos para que não abandonem as bonecas - abandonadas; torcemos para que não encurtem os vestidos – encurtados; torcemos para que não sejam olhadas – olhadas; torcemos para não saber – sabendo; fingimos não ser verdade – sendo; torcemos para não serem beijadas – sendo; torcemos para não durarem seus romances – a princípio, incluídos apenas na moderna categoria dos “ficantes”, entidade abstrata sem vínculos funcionais ou dores amorosas.
Mas é evidente que, com a cumplicidade das amigas, abandonados os primeiros temores, sinalizado aos pais que a vida tem um ciclo biológico a ser cumprido, ampliado o calendário de festas e eventos de modo geométrico e o guarda-roupa e o salto em extensões piramidais, eis que ela está pronta a ser conquistada.
A partir daí a mãe funciona como uma ONG auxiliar, e o pai, como sistema automotivo e último agente de alforria. Estão incluídos uns pequenos truques, que os pais ouvem com cara séria e a fé mais improvável do mundo, sem deixar transparecer que fato similar já tenha acontecido no universo.



Foi assim que, sábado destes, minha filha pediu-me para ir com amigas a um bar moderninho. Depois das seis horas de arrumação, e do caos no quarto, deixei-a lá com as colegas. Achei-a arrumada demais para encontro tão factual, mas a pulga atrás da orelha estava de ponto facultativo, e voltei para casa e fui tomar um vinho com amigos.
A conversa ia rolando, quando ela me telefonou:
- Pai, tu me ama?
- Filha, pode ir direto ao assunto e pedir, que o risoto tá esfriando.
-Afff! Sabe o que é, pai? É que um amigo disse que queria me levar em um show no Kabana”s. Nunca fui lá. Queria saber como é. Fique “de boa” que Amanda Almeida e Lucas Bulos (nomes fictícios) vão comigo.
A menção ao local, com muita dança, e a frágil garantia dos colegas deveria ter me alertado. Mas, todo trabalhado no vinho (conselho: se beber, não atenda a pedido de filha), concordei. Na real, percebi haver mais alguém. Mas, o amor pode surgir em qualquer lugar, e pensei que podia ser pior.
Mais tarde, com alguma expectativa - e alívio, não nego -, fui buscá-las.
- Filha, foi bom o show? Legal o cuidado desse “amigo“ teu em te levar em um espetáculo. Como era o nome da banda?
Foi aí que ela me contou, e perdi o sono. Fiquei imaginando minha neta fazendo uma redação pro colégio, ou pedindo à mãe para tocar a música do encontro dela com o pai e perguntando quem estava fazendo o show - se Sinatra, Roberto Carlos, ou, vá lá, Victor e Léo. E a mãe respondendo:
- Não, minha filha, ele me levou pra ver a banda “Receba a Galinha Pulando”.



Ainda não sei se economizo algum dinheiro para pagar o analista de minha neta, ou gasto-o comigo mesmo. Afinal, era indisfarçável seu riso de felicidade na manhã seguinte.