Primeira vez que fui a Madrid o Museu Rainha Sophia estava fechado. Vi as As Meninas de Velásquez e o Jardim das Delícias de H Bosch, no Prado, mas, na lista do que me prometi fazer desde que deixei o carro de boi e a luz do candeeiro, lá na roça, faltou Guernica. Voltei à Espanha quinze anos depois.
Domingo fui ver Guernica, de Picasso, inspirado na destruição da cidade basca pelos alemães, a pedido de Franco. O mural, cubista, em cinza, preto e branco, feito para uma Exposição, em Paris, tem segurança permanente. A sequencia de sua criação, fotografada por Dora Maar, a quarta das suas sete esposas, está exposta em frente. Picasso dizia:” No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo. ("Não, a pintura não está feita para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo."). Guernica foi escolhida por ser desprotegida e dizem que, além disso, “abrigava um velho carvalho embaixo do qual os monarcas espanhóis ou seus legados, desde os tempos medievais, juravam respeitar as leis e costumes dos bascos, bem como as decisões da batzarraks (o conselho basco)”. Era o que Franco precisava para uma lição na autonomia regional.
Era 26 de Abril de 1937, uma segunda feira de feira livre, fim de tarde, quando os sinos anunciaram o ataque dos aviões Heinkels-11 da Legião Condor, da Luftwaffe. O primeiro ataque aéreo da história contra alvo civil durou 2.45 h, com bombas, inclusive incendiárias. Quase 40% dos 7 mil habitantes foram atingidos. Os que fugiam eram caçados com metralhadoras. No diário de guerra anotou-se: "O tipo de construção das casas fez com que a destruição fosse total. Ainda se veem os buracos das bombas na rua. Simplesmente fantástico."
Em Maio a Prefeitura de Guernica emitiu uma nota: “Guernica foi ferida, mas não morrerá. Da árvore brotarão novas folhas verdes em toda primavera; seus filhos a ela retornarão; suas casas serão reconstruídas, suas igrejas escutarão novamente seus hinos e preces...
Guernica, o símbolo de nossas liberdades nacionais, e o símbolo da ferocidade do fascismo internacional, não pode morrer."
Em Junho de 1937 Picasso expõe a obra. Alguns dizem que ela começou como um quadro de um toureiro morto e foi concluído como Guernica. Como lenda dizem que, em 1940, um oficial alemão, diante de uma foto do painel, perguntou a Picasso se ele tinha feito aquilo. O pintor teria respondido: "Não, foram vocês”. O que importa é que ao fim Guernica era Guernica.
Picasso especificou que o quadro só deveria voltar a Espanha quando ela fosse uma democracia. Só em 1981, após a morte de Franco em 1975, os espanhóis receberam Guernica, “el último exiliado”.
O painel expressa a agonia da guerra, a inata brutalidade. É possível ler sobre os aspectos técnicos, mas longe de mim discutir arte. O que me fez contemplar longamente a pintura é esta tentativa nunca satisfeita, concluída, nunca saciada, de entender os limites da ação do homem contra o homem. A libertação da fúria, o horror, o caos, o anúncio que se fazia ao século de um novo poder mortal. A dor que emana das figuras, a mulher na escuridão, o homem de braços levantados, o cavalo em agonia, a mãe com o filho morto, a figura mutilada, me angustiam, e me deixam perplexo, embora saiba que nada do que é do homem nos é estranho.
Chovia fino, talvez proposital, quando saí do Museu e, não sei se mais humano, ou menos, fui caminhar pelas ruas da inocente Madrid. Dia seguinte iria para Salamanca, Patrimônio da Humanidade, conhecer sua Universidade. Guernica, o manifesto estético de Picasso, agora, viaja a vida comigo.