Anoitecia, ao deixar o consultório e voltar para casa, onde Átila e Ana Luisa me esperavam com suas expectativas e alegrias infantis. Apesar da luz ruim, na Senhor dos Passos, percebi uma mulher na calçada vindo em minha direção. Jovem, uns vinte e cinco anos. Usava vestido azul escuro com uma faixa branca na parte inferior. De pele alva, de alvura incomum por aqui. Não tinha beleza especial. Os cabelos eram curtos e claros, a ponta levemente curva em direção a face. O que chamava atenção é que chorava. Choro incontido, sem pudor, desatado. Constrangedor.
O passo era rápido, em desalinho, como se andasse bêbada, ainda que de incertezas. Fiquei em dúvida se a pressa era medo da noite ou da causa do seu choro. Não sabia se ia a esmo, do nada a lugar nenhum, como fazemos às vezes quando a vida de súbito nos rouba o ar, se buscava o abrigo de um lugar conhecido, ou a solidão, por vezes protetora, de um refúgio pessoal. Era uma mulher que chorava anonimamente na rua, desprotegida, imune aos que a olhavam. Percebi a bolsa apertada contra o corpo- última coisa que parecia lhe restar de sólido-, e o rosto inciso, de quem havia chorado muito.
Naquele instante era apenas uma mulher frágil, dissolvida, e sua fragilidade me comoveu. Guimarães Rosa põe na boca de um personagem: “ o que eu não sei -isso é que me mata” . E havia tanto que não sabia sobre aquele choro. Era possível que tivesse sido demitida, assombro diário, nessa economia amoral, fria, implacável e excludente. Amanheceria sem função e chorava pelo filho que deixaria a escola, o plano de saúde e o sonho do dia da criança, já próximo. Teria sido humilhada pelo chefe e chorava por ter de dobrar-se à necessidade? Ou ainda por estar com dor física e não emocional?
Talvez estivesse apenas indignada com os insultos do mundo, a barbárie, a fome, a ambição que faz iguais se dizimarem, o genocídio coletivo que assistimos imóveis, entre levemente culpados e profundamente indiferentes. Ou por ter sido vítima de inesperada ingratidão que lhe roubou a fé, a capacidade de acreditar e de confiar. Talvez chorasse por nada, como choram, às vezes, as mulheres que tem poros na alma. Mas não. Era choro maior, íntimo, como se de repente a vida lhe fosse insustentável e viver ardesse nos pulmões. De quem rompera com a esperança e seguia desnorteada, à deriva. Choro de amor, quase posso jurar. Como só as mulheres ainda são capazes.
Num impulso quis chamá-la, perguntar-lhe o acontecido, oferecer ajuda, mas como diz Fernando Pessoa o gesto tem uma imensa distância da intenção. Certamente que recuaria, assustada, temendo abordagem àquela hora já suspeita. Também não poderia acompanhá-la, pois o jantar me esperava e não podemos, embora devêssemos, simplesmente chegar em casa e dizer que demoramos na rua ajudando uma estranha que chorava de amor perdido.
Ela se distanciou. Entrei no carro e ao chegar a esquina ela invadia o sinal verde. Parei. Os ansiosos buzinaram. Esperei que cruzasse a rua, ainda chorando. Então fui para casa, rir da inocência dos filhos. No outro dia fui para a roça. Montei a cavalo, mas o choro daquela mulher, cuja dor parecia maior que lhe era possível suportar, não me saia do pensamento. Lembrei verso de Antônio Brasileiro –“ para nosso barco pequeno/ chegaram-se tão grandes mares.”
Mulher que chora. Eu não sei quem é você e é provável que nunca me leia, mas resolvi lhe escrever. E porque em meus receios e confortos deixei-lhe sozinha para atravessar tão imenso mar, venho aqui pedir-lhe desculpas, eu que, às vezes, também ando do outro lado da calçada.