segunda-feira, 2 de julho de 2007

Conto - A Náusea


O beijo -Klimt


O que ele não podia suportar era a clareza irrefutável da realidade. Ao desespero de qualquer origem, sobreviveria. Mas não à realidade que não podia ser modificada. Saber que, dia após dia, viveria sem a possibilidade de ser feliz inteiramente, como um relógio em que sempre faltasse uma hora e os ponteiros nunca pudessem completar a volta.

Seus ossos estavam completando centenas de anos, desde aquela noite em que lera as cartas que ela escondera. Eles se quebravam a cada vez que pensava nela e voltavam a se refazer com o alívio do sono, apenas para se partirem novamente, em centenas de pensamentos e pedaços, quando acordava, e a desejava, ela arrancando o travesseiro de sua cabeça, estendendo-o, e cravando o corpo dela em cima do seu feito bicho-caça que domina a presa, a fome desesperada de fêmea e o gozo que permanecia em seu corpo, quando se afastava, fazendo com que, mesmo terminado, ela continuasse tendo espasmos súbitos, depois e nos anos seguintes, a cada lembrança, ou quando sentia que ele escorria de dentro, em novos gozos, só dela.

Mas sabia que não podia livrar-se mais da imagem do corpo dela dançando com outro, como o seu próprio, a mímica de intenções incendiando o vestido, num brilho e vontade de iluminar mil mirantes, a alma se deliciando em insinuações e dizeres, em concessões ilimitadas, o vinho compartilhado de cumplicidades e revelações de milênios, antes ocultas, a inocente e a rameira no mesmo desejo, a boca entreaberta dizendo sim e aprendendo novos percursos, a fotografia que se perpetuará por dezenas de encarnações antes de se apagar, a memória que, tomada, jamais pode ser reocupada, como um feitiço que não liberta.

E, como um desejo nômade de dor, um sono inútil de dormir, uma náusea sem antídoto, ele as beija no jantar...

Um comentário:

Anônimo disse...

César,
Não, ele não 'a' beija no jantar, ele "as" beija no jantar. Ela não é mais 'só uma', ela é a que traz a memória do gozo infindo e também a da dor infinita quando vai viver o gozo com o outro. Ao final, fiquei com a sensação de que ele está enterrado vivo no gozo da própria dor...